18 de Janeiro / Ferreira Gullar
Dezoito
Sempre fiquei meio grilado com o jeito amargo dos poemas de Gullar. Mas, me parece que se olharmos para dentro do seu texto com olhar mais atento, vamos encontrar aquele esperancês que todo poeta tem que usar para sobreviver à angustia, dentro desse triste exercício da narração, do sentir o mundo com as entranhas.
Aqui vai um poema de “Dentro da Noite Veloz”, seu mais festejado livro até hoje. Onde a velocidade e ferocidade do seu cotidiano transpareceu em letras que revelam uma época para muitos maldita; a ditadura militar.
Agosto 1964
Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.
O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu a compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.
Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema
uma bandeira
(Agosto 1964 – Ferreira Gullar)
17 de Janeiro / Cadê a poesia?
Dezessete
A poesia está em toda parte. Nos anúncios de jornal, nas frases de caminhão, nos muros da cidade, nas bancas de revista, em qualquer parte lá está ela dizendo o que meras palavras agrupadas na frente de outras não conseguiriam dizer. É certo que ela não está trancafiada naqueles famosos livros de poesia, que a muitos causa um certo medo. García Márquez – o fantástico criador de “Cem anos de solidão” – disse da seguinte forma : “a ideia de que a ciência só concerne aos cientista é tão anticientífica como é antipoético pretender que a poesia só concerne aos poetas”.
Mas, é o poeta do povo, Patativa do Assaré, quem chega agora para comunicar uma verdade: que para fazer poesia não precisa ter diploma não doutor. Sua arte chegou às vistas de acadêmicos e varredores, tratou o romance, usou a rima, o verso livre, contou histórias e emocionou muita gente por esse mundo a fora, sem completar ao menos cinco meses de estudo.
Eu venho dêrne menino,
Dêrne munto pequenino,
Cumprindo o belo destino
Que me deu Nosso Senhô.
Eu nasci pra sê vaquêro,
Sou o mais feliz brasileiro,
Eu não invejo dinheiro,
Nem diproma de dotô.
(Trecho de O Vaqueiro – Patativa do Assaré)
Preciso chamar novamente o Nobel colombiano, Gabriel García Marquez. Ele vai citando alguns amigos das letras, no seu recente livro “Eu não vim fazer um discurso”, e como encontravam poesia até em seção econômica ou página policial de periódicos daquela época, na xícara de café, na sopa… tantos lugares! “Daniel Arango achou-a num decassílabo perfeito, escrito com letras urgentes na vitrine de um armazém: ‘Liquidação total de tudo’.”
Onde encontrar a poesia? Talvez outro brilhante artista popular, nosso pernambucano J.Borges, consiga nos dá uma pista de como deveríamos procurar por ela… Amanhã, tô de volta.
16 de Janeiro / Para que serve poesia?
Dezesseis
Diálogo rápido e rasteiro:
– Para que ficar falando de poesia em tempos difíceis como este, meu senhor? Enchentes em Minas, desabrigados no Espírito Santo, morte nos assentamentos, tudo um caos, tanta gente pedindo socorro e você com poesia?
– Devolvo a pergunta, nobre pensador: se um dia encontrássemos o mundo em completa paz – calmo e tranquilo como um grilo na beira de um rio – para que dedicar tempo e alma na leitura de um texto poético?
*
Voltamos! Se você não consegue responder a segunda pergunta, jamais encontrará resposta para a primeira.
Sim! É verdade; essa tal dúvida de espíritos extremamente ‘práticos’ não é coisa nova. Eles fazem pouco caso daquilo que não esteja dentro da sua solidariedade e humanidade – o pensamento deles é: o que eu faço é sempre mais importante. No fundo eles estão apresentando uma hierarquia de tarefas urgentes e obviamente seus interesses aparecem no topo da lista. Literatura, poesia e arte só poderiam aparecer no nosso dia a dia quando todos os verdadeiros problemas da humanidade fossem resolvidos.
Lembrei de C.S.Lewis e o seu instigante sermão “aprendendo em tempos de Guerra”.
No outono de 1939, enquanto Hitler, bem perto dali, começava a destruir a Europa com sua praticidade ariana; veja o que o velho irlandês compartilhou com a sua Igreja em Oxford:
“ O que estamos fazendo aqui a estudar filosofia e literatura medieval, enquanto a Europa está em guerra? Como podemos continuar com nossos interesses e nossas plácidas ocupações quando as vidas e as liberdade de nossos irmãos europeus estão em perigo? Não estamos também tocando violino enquanto Roma se incendeia? Para um cristão, a grande tragédia de Nero não foi que ele tocasse violino enquanto a cidade se queimava, mas que ele tocava diante do inferno.”
Proust já disse: “um escritor contemporâneo tem tudo por fazer”. Isso não significa apenas que cada geração carece de escritores e que esses devem inventar sua própria linguagem, mas que toda geração precisa de novos leitores para novos escritores. Daí ser útil profetizar aos cegos que comecem a ver. Que seus olhos consigam scanear o mundo e traduzi-lo em palavras. Ou melhor, que esses consigam pegar suas palavras e subverter este mundo!
C.S. Lewis dá mais uma dica sobre o assunto:
“O MAIOR inimigo [do acadêmico em tempos de guerra] é a ansiedade – aquela tendência de pensar na guerra e senti-la quando, na verdade, o que pretendíamos fazer mesmo era pensar no nosso trabalho. A melhor defesa é reconhecer que nisso, como em outros aspectos, na verdade, a guerra não trouxe nenhum novo inimigo, apenas piorou o antigo. Sempre temos inúmeros inimigos no trabalho. Vivemos nos apaixonando e competindo, procurando um emprego ou com medo de perdê-lo, ficando doentes e nos recuperando, acompanhando escândalos públicos. Se nos deixarmos levar, estaremos sempre esperando o término de alguma distração ou outra para, então, nos concentrar no nosso trabalho. As únicas pessoas que alcançam êxito são as que querem tanto o conhecimento que insistem em buscá-lo mesmo em condições pouco favoráveis. Nunca temos condições favoráveis. É claro que há momentos em que a pressão da ansiedade é tão grande que só o autocontrole de um super-homem seria capaz de resisti-la. Esses momentos acabam chegando tanto na guerra quanto na paz. Precisamos fazer o melhor que conseguirmos. “
Tanto na guerra quanto na paz, desejo a você uma vida inteira (na íntegra) onde solidariedade ande de mãos dadas com o amor, a fé acompanhada pelo pão, a mesa cheia de amigos e de criatividade, onde não se desperdice nada. Mas que ainda sobre coragem pra gente despedacar toda idiotice e objetividade que empobrece a nossa existência.
Termino, relembrando o nosso primeiro poeta do Guia de Leitura Poética 2012: Mário Quintana.
Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
– para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.
(Emergência )
15 de Janeiro / Anchieta
Quinze
O “apóstolo do Brasil” – como ficou conhecido o padre José de Anchieta – morreu aos 63, numa pequena cidade do Espírito Santo que hoje leva o seu nome. Isso foi há muito tempo atrás, tempão, quando a folhinha do calendário marcava 1597 – antes mesmo de Antonio Vieira, citado ontem por aqui. Ele deixou um legado social que é criticado por alguns e louvado por outros. Mas, quase ninguém fala da sua produção poética. Além de escrever peças de teatro e o catecismo que a Igreja Católica usou durante 300 anos aqui no Brasil, seu desejo pelo sagrado e pelo porvir se traduziu em versos simples, como estes, que agora passamos a ler.
Não há coisa segura.
Tudo quanto se vê
se vai passando.
A vida não tem dura.
O bem se vai gastando.
Toda criatura passa voando
Contente assim, minh’alma,
Do doce amor de Deus
toda ferida,
o mundo deixa em calma,
buscando a outra vida,
na qual deseja ser absorvida.
(Em Deus, meu Criador – José de Anchieta)
13 de Janeiro / Carlos Drummond de Andrade
Treze
Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.
Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.
Vamos beber uísque, vamos
beber cerveja preta e barata,
beber, gritar e morrer,
ou, quem sabe? beber apenas.
Vamos xingar a mulher,
que está envenenando a vida
com seus olhos e suas mãos
e o corpo que tem dois seios
e tem um embigo também.
Meu amigo, vamos xingar
o corpo e tudo que é dele
e que nunca será alma.
Meu amigo, vamos cantar,
vamos chorar de mansinho
e ouvir muita vitrola,
depois embriagados vamos
beber mais outros sequestros
(o olhar obsceno e a mão idiota)
depois vomitar e cair
e dormir.
(Convite Triste Carlos Drummond de Andrade)
O que a poesia brasileira já disse sobre a amizade? Bem, imagine que são tantos textos sobre essa benção relacional que precisamos fazer uma série sobre o assunto. Começamos bem! Nessa fase irônica do mineiro de Itabira, o genial Carlos Drummond de Andrade aparece no nosso sítio brigando com o mundo! É verdade, Convite Triste como esse, seu Drummond, não deixou de estar impresso em centenas de mensagens trocadas numa sexta-feira durante o expediente de trabalho. Diluídos na embriaguez de novos contatos, daqueles amigos aparentes, que teimam em surgir por aí celebrando o desespero, o desencanto…