30 de Janeiro / João Ubaldo Ribeiro

Postado por: em jan 30, 2012 | 1 comentário

Trinta

 

Sou fã. Ponto. E quem não é? João Ubaldo Ribeiro, o pai do VJ da MTV Bento Ribeiro, é um gênio do nosso vernáculo. Ganhador dos mais importantes prêmios literários da nossa língua (Jabuti e Camões, por exemplo), sucesso de vendas e grande contador de histórias, ele chega aqui pra compartilhar parte do seu mais destacado livro: “Viva o povo brasileiro”.  Chega mais perto e vamos ouvir:

 

“ Num lugar que ninguém sabe, pela praia ou pelo mato, pela ilha ou pela terra, era uma vez um vigário. Era uma vez a freguesia desse vigário, era uma vez sua igreja, era uma vez o povo que nesse sítio morava, onde havia muitas beatas e muita gente misseira e benigna. O vigário, antes da missa, não podia descansar, porque vinham as beatas se confessar. Depois da missa, não podia descansar, porque vinham as beatas se confessar, e então o padre não fazia outra coisa que cuidar das desobrigas daquele povo carolo. Aí o padre pensou, pensou, pensou e chegou num resultado, que foi fazer por escrito um ror de coisas, ror esse que preparou para ler na missa. Quando chegou a missa, o padre pegou do ror e leu da seguinte maneira: minhas prezadas devotas, povo desta freguesia, já estou ficando velho e cansado e não tenho mais tempo e sustança para tanta confissão todo dia. Por isso que doravante vamos obedecer à seguinte disposição, que eu mesmo pensei muito bem pensado e escrevi muito bem escrito, estando tudo muito bem ajuizado: no domingo, eu confesso as preguiçosas e as que não têm asseio; na segunda, as que furtam e as que mentem; na terça, as que bebem; na quarta, as que enganam o marido ou pecam ao contubérnio; na quinta, as crocas e as maldizentes; na sexta, as feiticeiras, as mandingueiras e as treiteiras; no sábado, as comilonas e as invejosas. Que quando o vigário terminou de dizer isso, ninguém disse nada na hora, mas toda a gente se olhou assim, e daquele dia em diante não teve mais beata que quisesse confissão naquela freguesia e o vigário descansou à larga com seu bom vinho de missa, pé de pato mangalô três vez.”

Pai do Bento

 

(Viva o Povo Brasileiro, pág.94 e 95, João Ubaldo Ribeiro – 2009)


27 de Janeiro / A Lavoura de Luiz Fernando Carvalho – parte II

Postado por: em jan 27, 2012 | 2 comentários

                                                                                     Vinte e sete

 

Segue agora a segunda parte do impressionante diálogo entre André e seu pai. Um tipo de retorno do filho pródigo, retirado da brilhante adaptação que Luiz Fernando Carvalho fez da obra Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar.

O diretor da minissérie Hoje é dia de Maria, recortou  palavras, incluiu  expressões, reinterpretou o  texto original e produziu, assim, uma eletrizante cena, um reencontro entre pai e filho à mesa da família. Fez transparecer na arte a realidade de muitos lares (talvez o nosso), talvez o retrato da nossa história. Vamos acompanhar

 

“— O senhor não me entendeu, pai.

— Como posso te entender, meu filho? Existe obstinação na tua recusa, e isto também eu não entendo. Onde você encontraria lugar mais apropriado para discutir os problemas que te afligem?

Pai

— Em parte alguma, menos ainda na família; apesar de tudo, nossa convivência sempre foi precária, nunca permitiu ultrapassar certos limites; foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos.

Não receba com suspeita e leviandade as palavras que te dirijo, você sabe muito bem que conta nesta casa com nosso amor!

— O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele não sabe o que quer; não passando hoje de uma pedra no caminho. O amor nem sempre aproxima, pai, o amor também desune; e não seria nenhum disparate eu concluir que o amor na família não tem a grandeza que se imagina.

— Cale-se! Já basta de extravagancias! Seja simples!

— Não acho que sejam extravagâncias, se bem que já não me faz diferença que eu diga isto ou aquilo, mas como é assim que o senhor percebe, de que me adiantaria agora ser simples como as pombas? Se eu depositasse um ramo de oliveira sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele simplesmente um ramo de urtigas.

— Nesta mesa não há lugar para provocações, deixe de lado o teu orgulho, domine a víbora debaixo da tua língua, não dê ouvidos ao murmúrio do demônio. Seja humilde, André, me responda como deve responder um filho! Seja claro como deve ser um homem!

— Se sou confuso…

— Acabe de uma vez com a confusão nessa sua cabeça!

— Se evito ser mais claro …

— Cale-se! Não vem desta fonte a nossa água, não vem destas trevas a nossa luz, não é a tua palavra arrogante que vai demolir agora o que levou milênios para se construir! Ninguém em nossa casa há de falar mudando o lugar das palavras, embaralhando as ideias, desintegrando as coisas numa poeira, pois aqueles que abrem demais os olhos acabam só com a própria cegueira. Ninguém em nossa casa há de padecer também de um suposto e pretensioso excesso de luz, capaz como a escuridão de nos cegar. Ninguém ainda em nossa casa há de dar um curso novo ao que não pode desviar, ninguém há de confundir nunca o que não pode ser confundido, a árvore que cresce e frutifica com a árvore que não dá frutos, a semente que tomba e multiplica com o grão que não germina! A nossa simplicidade de todos os dias com um pensamento que não produz. Por isso, dobre a tua língua!  Nenhuma sabedoria devassa há de contaminar os modos da família! Não foi o amor, como eu pensava, foi o orgulho, o desprezo e o egoísmo que te trouxeram de volta à casa!

— “Chega, Iohána! Poupe nosso filho!” (entra a mãe, implorando com os olhos aflitos para o pai)

— Estou cansado, pai, me perdoe… ! Não trago o coração cheio de orgulho como o senhor pensa. Eu volto pra casa humilde e submisso. Não tenho mais ilusões, já sei o que é a solidão, eu já sei o que é a miséria. E sei também agora, que não deveria ter me afastado um passo sequer da nossa porta. De agora em diante serei como meus irmãos; me entregarei com disciplina às tarefas que me forem atribuídas, chegarei aos campos de lavoura antes que ali chegue a luz do dia, e só os deixarei bem depois de o sol se pôr. Farei do trabalho a minha religião, farei do cansaço a minha embriaguez. Eu vou ajudar a preservar nossa união, pai. Eu quero merecer de coração sincero todo o teu amor.

— Tuas palavras abrem de novo meu coração, querido filho. Sinto meus olhos molhados de alegria, apagando depressa a mágoa que você causou ao deixar a casa. Sinto uma luz nova sobre esta mesa; por um instante, cheguei a pensar que tinha semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda num campo de espinhos. Mas não… Amanhã vamos festejar aquele que estava cego e recuperou a vista! Agora vai descansar, meu filho. Meu filho querido.”

Filho

 

 

20 de Janeiro / Murilo Mendes

Postado por: em jan 20, 2012 | 4 comentários

 

Vinte

Parece que descobri um gênio. Estou aqui espantado com sua capacidade de produzir linguagem , de falar da Eternidade, de nos distraír com sua imagética. Senhoras e senhores, diretamente de Juiz de Fora: Murilo Mendes.

Outra Apologética

 Viver organizando o diamante

(Intuindo sua face) e o escondendo,

Tratá-lo com ternura castigada.

Nem mesmo no deserto suspendê-lo.

Mas viver consumindo de sua graça.

Obedecer a este fogo frio

Que se resolve em ponto rarefeito.

Viver: do seu silêncio se aprendendo.

Não temer sua perda em noite obscura.

E do próprio diamante já esquecido,

Morrer, do seu esqueleto esvaziando:

Para vir a ser tudo, é preciso ser nada.

(São João da Cruz- Murilo Mendes)

 

19 de Janeiro / Gastronomia

Postado por: em jan 19, 2012 | Nenhum comentário

 

      Dezenove

Alguns não sabem disso, mas, tenho colocado o texto a seguir como uma placa sobre a minha mesa. Quero olhar para ele todos os dias na intenção de que ele faça parte da minha estrutura: “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria e precedendo a honra vai a humildade” (Provérbios 15:33). Encontrei essa preciosidade num livro da Bíblia que de fato não é só uma reunião de livros milenares; é uma escola de vida prática. Tão prática que tem hora que  me assusto.

Veja o que encontrei agora. Descobri que Jacó abençoou Aser, um dos seus doze filhos, com uma benção epecial: da boa gastronomia!

“Aser será famoso por sua comida deliciosa,
doces e guloseimas próprios de reis” (Genesis 49.20)

 

Que beleza! Comida, bebida, doces, festa, banquete, vinho, alegria.. a Bíblia acontece na vida real e é para mim o roteiro da vida real.

Cozinha, Graça e Poesia ...

Logo que li esse trecho, lembrei de uma poetisa maranhense não muito conhecida.

E daí imaginei a gente juntar poesia e gastronomia aqui na cozinha. Quem sabe mais do que isso: a cozinha pode se tornar um lugar de encontro entre poetas e a Maravilhosa Graça, essa que nos abençoa e nos reconcilia com Deus.

Fiquei animado com a ideia!

Voltando à poetisa lembrada no meio desses devaneios, ela apareceu recentemente numa antologia que está quebrando recordes de venda: “Os cem melhores poemas brasileiros do século”. Liguei banquete com cozinha e cozinha com Utensílios. Aí está:

 

Para extrair

do alumínio seu lúmen

usaria

o desusado, exaurido verbo “haurir”

Arearia

panelas

à beira de um rio, mergulhada

no alumínio luzidio

– “haurindo-o” –

polindo-lhe

a índole de água

e o ímpeto de prata

com grãos

de ouro de areia

arearia

“ourada”

submersa em seu domínio

(Utensílios – Lu Menezes)

 

 

 

 

 

 

18 de Janeiro / Ferreira Gullar

Postado por: em jan 18, 2012 | 2 comentários

Quem olha para o chão não deixa de tocar a transcendência

                      Dezoito

 Sempre fiquei meio grilado com o jeito amargo dos poemas de Gullar. Mas, me parece que se olharmos para dentro do seu texto com olhar mais atento,  vamos encontrar aquele esperancês que todo poeta tem que usar para sobreviver à angustia, dentro desse triste exercício da narração, do sentir o mundo com as entranhas.

Aqui vai um poema de “Dentro da Noite Veloz”, seu mais festejado livro até hoje. Onde a velocidade e ferocidade do seu cotidiano transpareceu em letras que revelam uma época para muitos maldita; a ditadura militar.

 

 Agosto 1964

 

Entre lojas de flores e de sapatos, bares,

              mercados, butiques,

viajo

num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.

Volto do trabalho, a noite em meio,

fatigado de mentiras.

 

O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,

relógio de lilases, concretismo,

neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,

                                    que a vida

eu a compro à vista aos donos do mundo.

Ao peso dos impostos, o verso sufoca,

a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

Digo adeus à ilusão

mas não ao mundo. Mas não à vida,

meu reduto e meu reino.

                                                        Do salário injusto,

da punição injusta,

da humilhação, da tortura,

do terror,

retiramos algo e com ele construímos um artefato

 

um poema

uma bandeira

 

(Agosto 1964 – Ferreira Gullar)