07 de Fevereiro / Newton Moreno e Maria do Caritó

Postado por: em fev 7, 2012 | 1 comentário

Trinta e oito

 

Nova Geração

 

Rookmaaker dizia que o artista tem um tipo de aspirador espiritual apontado para o seu tempo. Ele aspira o que estiver ao seu alcance. As metáforas, os tipos, as palavras, as cenas revelam a poeira do cotidiano. Vamos ler agora  uma parte do que Newton Moreno conseguiu aspirar. Um dos mais premiados autores da nova geração.

 

A peça Maria do Caritó foi escolhida para esse post por um só motivo: eu assisti e gostei. Desse trecho tiro tanta coisa…

bilhete com a reserva para a peça

Espero que te inspire:


Cena 11

No escuro, ouve-se Maria cantando.

Maria Caritó

“Santo Antônio pequenino

Deus me guie em bom caminho

Nossa Senhora, minha madrinha

Nosso Senhor, o meu padrinho.”

 Luz volta e Maria está no mesmo lugar onde começou a peça. O pau-de-sebo no palco, com as bandeira de Santo Antônio penduradas no alto. Maria abraçada com a imagem de Santo Antônio.

Maria Caritó

Ontem, eu tive um pesadelo danado. Tu já pensasse se tu olhasse para a cruz e não achasse mais Jesus? Apois, no meu pesadelo, todas as imagens de Cristo sumiam das igreja e das casas. Era um varal de cruzes abandonadas , sem nenhum corpo do salvador, nem resto de seu sangue, nem bilhete de despedida. Mesmo sem sinal de roubo, a poliça começava a investigar. Os padres acreditavam em intervenção divina: Jesus desistiu de todos nóis. O homem caiu muito. Ele se mudou de mala, cuia e coroa de espinho para outro lugar. Aí, no meu sono, a cidade enlouquecia. Começaram a se acusar. Todo mundo virou um possíve suspeito. Até escolherem um morador novo e malquisto. Todos descobriram algo que não gostavam a seu respeito. Ele se traja diferente, ele não fala com quase ninguém, ele ouve música alto, ele parece meio afeminado, ele cheira mal. O povo danou-se a listar defeito no home, até que exigiro que ele confessasse. E ele, nada. Ainda assim, o homem era preso. Mas aí as imagens começaram a sumir em outro lugarejo próximo. E noutro. E noutro. Então eles viro que cometeram um erro e foram pedir para soltar o moço. Uns arrependidos começaram a se ajoelhar nas cruzes despidas de Nosso Senhor e rezavam com fé, pedindo uma explicação. Só quando toda a cidade tinha retornado à missa e pedia em coro para o retorno de Jesus é que entrou correndo pela nave da Igreja um menino e ele gritava: “Jesus pousou lá em casa!”. Pois num é que o povo foi todinho acudir à sua casa? Quando chegaram lá, era um casebre simples e tinha uma véia sentada, segurando uma imagem pequena, talhada em madeira, com a figura de Jesus. Ela disse: “Num sei porque esse aperreio. Eu sempre sube que ele voltaria. Isso foi só um teste para ver até onde ocês confiava que ele num abandonaria. Nunca perdi a fé.”

Aí, nessa hora, eu acordei. E considerei: é a fé que põe de pé, é a fé que faz desabar.

Ainda está valendo a promo.

Ah, esqueci de dizer: a Lilian Cabral é quem interpreta Maria Caritó. Releia agora imaginando ela no palco. É de arrepiar!

06 de Fevereiro / Caetano Veloso e sua “Língua”

Postado por: em fev 6, 2012 | 1 comentário

Trinta e sete

 

Resta-nos a invenção e uma nova sintaxe! O jeito brasileiro de falar português já nos foi dado, e agora o que faremos nós com esse tamanho de dádiva? A língua africana embrenhada com a fala indígena e a gramática lusitana se misturando, entrelaçadas elas mesmas no encontro dos portos, na visita do estrangeiro. Esse é o tabuleiro. Essa é fôrma onde fizeram a cocada: essa língua deliciosa e totalmente brasileira.  Resta-nos a invenção e uma nova sintaxe!

Enquanto vocês pensam nisso. Vamos ler, assistir e ouvir o professor Caetano Veloso nesta estonteante versão de “Língua” – uma obra prima do seu disco Vêlo de 1984.

 

 Língua
Caetano Veloso

Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala Mangueira! Fala!

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?

Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(– Será que ele está no Pão de Açúcar?
– Tá craude brô
– Você e tu
– Lhe amo
– Qué queu te faço, nego?
– Bote ligeiro!
– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
– I like to spend some time in Mozambique
– Arigatô, arigatô!)

Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem

03 de Fevereiro / José Albano

Postado por: em fev 3, 2012 | 3 comentários

 Trinta e quatro

Clássico

 

 

Reverenciado por Tristão de Athayde como alguém que “criou uma poesia intemporal, em que o verdadeiro clássico se perpetua em sua perenidade”. Um homem que os historiadores não conseguem catalogar, José Albano declama agora no Nossa Brasilidade o seu Soneto IX. Vamos ouvir:

 

Bom Jesus, amador das almas puras,

Bom Jesus, amador das almas mansas,

De ti vêm as serenas esperanças,

De ti vêm as angélicas doçuras.

Em toda parte vejo que procuras

O pecador ingrato e não descansas,

Para lhe dar as bem-aventuranças

Que os espíritos gozam nas alturas.

A mim, pois, que de mágoa desatino

E, noute e dia, em lágrimas me banho,

Vem abrandar o meu cruel destino.

E, terminado este degredo estranho,

Tem compaixão de mim, Pastor divino,

Que não falte uma ovelha ao teu rebanho!

(Soneto IX – José Albano )

 

 

 

02 de Fevereiro / Tasso da Silveira

Postado por: em fev 2, 2012 | 2 comentários

Trinta e três

 

A chamada ala espiritualista do modernismo é composta de nomes como Cecília Meirelles, Murilo Mendes, Tristão de Ataíde, entre outros que valorizavam a religiosidade dos poetas.  Mas nessa hora, vamos receber no nosso sítio Tasso da Silveira – nome muito respeitado dentro dessa ala.

 

Ele acabou entrando nos noticiários do último ano de forma indireta, por causa da catástrofe de realengo. A escola municipal que recebeu aquele psicopata, para  inimaginável crueldade,  é batizada com seu nome; Tasso da Silveira.

 

Diante das catástrofes qualquer poesia se torna palavra oca. O excesso de realidade absurda, o terror descabido, toda essa loucura, extrapola as tentativas de representação. Fazer poesia depois daquele dia é ainda mais absurdo!
Sim. Porque fica claro a diferença da religiosidade do louco-terrorista e do poeta-espiritualista: para o louco a religião é morte, é guerra, para o poeta é a vida transbordando pois se encontrou com a Esperança! Essa que não nos entorpece para a realidade, mas, pelo contrário, faz em nós lucidez e ajusta em nós o rumo.
Vamos ouvir o poeta em dois trechos preciosos:


Da minha vida ao fim da caminhada

vejo-me agora numa selva escura,

não como a do Alighieri dominada

pelas três feras da hórrida aventura:

 

uma selva que, embora de amargura,

é por sinais de Deus iluminada:

há brancos trêmulos na altura,

leva-me pela mão a muito amada.

A infinita esperança deste instante

(Senhor, Senhor! Bem sei que nunca pude

fazer da clara estrada a via eterna),

 

é que para o meu passo vacilante,

esta selva de aspecto triste e rude

seja o caminho da Mansão Paterna.

 

(Soneto 6, Regresso à origem– Tasso da Silveira)

A ver uma realidade total

                *

Nós temos uma visão clara desta hora.

Sabemos que é de tumulto e de incerteza.
E de confusão de valores.
E de vitória do arrivismo.
E de graves ameaças para o homem.

Mas sabemos, também, que não é esta a primeira
hora de agonia e inquietude que a humanidade vive.

(…)

A arte é sempre a primeira que fala para anunciar
o que virá.
E a arte deste momento é um canto de alegria,
uma reiniciação na esperança,
uma promessa de esplendor.

Passou o profundo desconsolo romântico.
Passou o estéril ceticismo parnasiano.
Passou a angústia das incertezas simbolistas.

O artista canta agora a realidade total:
a do corpo e a do espírito,
a da natureza e a do sonho,
a do homem e a de Deus,

canta-a, porém, porque a percebe e compreende
em toda a sua múltipla beleza,
em sua profundidade e infinitude.

E por isto o seu canto
é feito de inteligência e de instinto
(porque também deve ser total)
e é feito de ritmos livres
elásticos e ágeis como músculos de atletas
velozes e altos como sutilíssimos pensamentos
e sobretudo palpitantes
do triunfo interior
que nasce das adivinhações maravilhosas…

O artista voltou a ter os olhos adolescentes
e encantou-se novamente com a Vida:

todos os homens o acompanharão!

(Intróito-  Definição do Modernismo Brasileiro, 1932 -Tasso da Silveira)

01 de Fevereiro / Mais perto do Infinito

Postado por: em fev 1, 2012 | Nenhum comentário

Trinta e dois

Meu capital intelectual está muito bem investido em amigos como Guilherme de Carvalho, Rodolfo Amorim, Simonton Araújo e Raquel Araújo – para citar os mais próximos. É que sempre que deposito uma fração irrisória de alguma ideia em suas ações, eles me devolvem quantias substanciais de saberes valiosos!

 

Este texto é inspirado numa referência que Raquel me trouxe ontem a noite.  Enquanto lia certa coletânea de artigos, ela percebeu num texto de Márcio Seligmann-Silva algo relacionado ao Nossa Brasilidade. Como é generosa, não demorou a twittar a frase, e como é minha vizinha (e cunhada) resolveu visitar a irmã mais linda que tem e não veio de mãos vazias; trouxe o livro para eu folhear. Claro, fiz mais que isso, tirei uma cópia e li o artigo todo – uma maravilha.

 

Entre outros insights, esse artigo expos a já conhecida fragilidade da linguagem objetiva quando ela tenta traduzir o mundo dos fatos. A realidade, a experiência e principalmente o exagero de certos objetos transbordam este copo raso da representação. É maior que ele. Daí nasce a necessidade do simbólico e da metáfora.

Para reforçar essa constatação, o escritor cita, nesse momento, Schlegel:

 “A necessidade da poesia nasce da impossibilidade da filosofia em expor o infinito

Já estamos no primeiro dia de Fevereiro e há 31 dias assistimos essa vontade de tocar o Infinito sendo estampada nos recortes da nossa literatura.  Para não perder o costume, e certo de que a aventura só está começando, aqui vai mais um:

 

CENA 32

BASTIDORES DO PALQUINHO / INTERIOR / TARDE

 Ainda no mesmo povoado, Quirino representa sobre o palquinho um de seus costumeiros números de plateia. Parte de sua cena é vista dos bastidores, onde Maria  e Rosa se despedem.

 ROSA

 Espera o espetáculo acabá…

MARIA

 Meior, não.

 

ROSA e MARIA olham-se e se abraçam. ROSA começa a chorar.

 MARIA

 Chora, não Rosa!

 E também desaba no choro.

 ROSA

 Choro , sim, Maria, purque é duro chega no fim das coisa.

 MARIA

Depois do fim tem sempre mais caminhá! E amizade é riqueza que num se perde.

As duas se abraçam com força.

 ROSA

 Que o bom caminho se abra pr’ocê pelo mundo!

 MARIA

 Pra ocê tomém. E que a gente mereça trilhá até o fim do que nunca termina.

 

Maria enxuga as lágrimas e sorri para Rosa. Pega um embornal com uns poucos pertences e se afasta. Rosa enxuga as lágrimas.

 

(Hoje é dia de Maria – Da obra de Carlos Alberto Soffredini / escrito por Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho)