A Umbanda Music e o Samba sem Farofa

Postado por: em abr 20, 2012 | 16 Comentários

A música sacra afro-brasileira – utilizada especificamente nos cultos aos orixás – foi, no entendimento dos estudiosos do samba, a engrenagem desse estilo musical que ainda hoje é chamado de ‘o ritmo do Brasil’; esse som brasileiro tem na dança religiosa dos negros sua grande matriz. Bantos e iorubás (principais povos africanos trazidos para cá), de acordo com Reginaldo Prandi, só formaram de fato uma religião própria a partir da segunda metade do século XIX – nessa mesma época chegaram os primeiros missionários protestantes ao Brasil, quando também se organizou as igrejas históricas (congregacional, presbiteriana, metodista e batista). O Protestantismo Tupiniquim e o Candomblé, portanto, fazem aniversário no mesmo tempo. Lá se vão cento e sessenta anos!

Cena de Samba / Antonio Gomide

Muito tem sido investigado sobre a “contribuição evangélica à cultura brasileira”.Gedeon Alencar, cientista da religião e escritor, nos provocou recentemente a respeito desse tema. Logo que comecei a escrever sobre a nossa brasilidade, suas inquietações emergiram dessas águas misteriosas por onde navego enquanto descubro esse mar de informações. Para Alencar, o nosso protestantismo atual é “ambíguo, pluralista, intermediário, carnavalesco, sincrético… nem branco nem preto. Protestantismo Tupiniquim Mulato”. Mas, antes de se construir esse jeito evangélico, essa atitude antropofágica em relação a cultura, onde tudo que é mundano vira gospel, “lavando e santificando” os ritmos, esportes, tvs, rádios, cinemas e etc , antes disso, a classe média branca e católica deu uma outra resposta ao samba de terreiro logo no início de tudo; lá nos temos de Pixinguinha e Donga [frequentadores dos terreiros], nesse tempo, já existia Noel Rosa, Braguinha e Almirante com um projeto: fazer um samba sem farofá.

 

 

A filha carioca do Candomblé – a Umbanda – e também o samba, surgem quase que ao mesmo tempo, “nos anos 20 e 30 do século passado, ambos frutos do mesmo processo de valorização da mestiçagem que caracterizou aqueles anos e de construção de uma identidade mestiça para o Brasil” (Prandi) . Esse mesmo autor aqui citado catalogou e publicou 761 letras da MPB com referência a orixás e outros elementos das religiões afro-brasileiras. Entre o nascimento do samba e os dias de hoje (passe o olho na nova geração da chamada música popular) existe uma grande quantidade de termos explícitos da confissão mística do candomblé, o que chamo em contraste ao gospel brasileiro de umbanda music. Vinícius de Morais, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Clara Nunes, Ivete Sangalo, Jorge Ben Jor, Lenine, Céu, Maria Betânia, Elis Regina, Ivan Lins, Maria Gadú, Seu Jorge, Roberta Sá, para não falar dos sambistas Martinho da Vila, Arlindo Cruz e Lecy Brandão, artistas da música erudita como Villa Lobos, Carlos Alberto Pinto da Fonseca, todos eles e muitos outros do rock nacional também se renderam à uma confissão religiosa, a saber a Umbanda e o Candomblé. Não é a toa que acho muito estranho chamarmos somente a música de confissão cristã de religiosa… Não é a toa que acho esquisito chamarmos uma confissão específica [a que exalta o panteão afro] de tipicamente brasileira e a outra de “gospel”, uma coisa a parte… Você não acha?

Noel Rosa

Mas, como já disse anteriormente, lá no início já havia gente que não se sentia a vontade com a temática ou a visão de mundo da umbanda music e nem por isso foram lançados para fora da cultura, criando um segmento ‘confessional’ por não reproduzirem o canto dos terreiros. Em algum momento de suas carreiras, estes artistas cantaram outro universo diferente daquele cantado pela grande maioria da MPB. Entre eles podemos citar, além de Noel Rosa, Braguinha e Almirante, o nosso sambista realista Nelson do Cavaquinho, Tom Jobim, Milton Nascimento e a turma do Clube da Esquina, Los Hermanos, Legião Urbana e o mais famoso deles, Roberto Carlos. Se o pesquisador Reginaldo Prandi se utilizou de recursos públicos e de uma equipe de colaboradores para fazer uma lista de composições com referencias à poesia afro, por que não fazer o mesmo investigando a marca cristã dentro da música popular brasileira? Estou convencido de que a turma que gasta tempo criticando a própria família da fé daria contribuição mais digna ao Reino empenhando forças nesta direção, no mínimo a nossa cultura seria mais enriquecida com trabalho tão importante. Certamente vamos encontrar muitos e geniais artistas como o grande cantador Elomar cujo lema é “servir a Deus e cantar o sertão”. E o caso do Noel? Ouça aí: “A vila tem um feitiço sem farofa/ Sem vela e sem vintém/Que nos faz bem”.

Em Janeiro deste ano, a presidente (a) Dilma sancionou uma lei que altera a famosa Lei Rouanet para estender benefícios da renúncia fiscal à música religiosa, o texto diz: “Para os efeitos desta Lei, ficam reconhecidos como manifestação cultural a música gospel e os eventos a ela relacionados, exceto aqueles promovidos por igrejas.” Isso já é uma avanço no sentido de atualizar o discurso da nossa identidade brasileira – algo parecido com o que foi feito no início do século passado com relação a mestiçagem e ao negro – pois seria absurdo ignorar a força da música evangélica. Não interessa aqui o esforço político envolvido nessa mudança. No entanto, algo além disso está claro para mim: a nova geração, naturalmente vai construir uma nova música brasileira tendo uma outra matriz para a sua confecção, que não é a umbanda music, nem o pessimismo filosófico do rock oitentista, mas a herança cristã que o jovem e contraditório movimento gospel divulgou e em muitos casos renegou. Não precisa acender sua vela. Essa música já está ai!

 

 

[ Esse texto você encontra também na Ultimato Online. Toda sexta-feira uma coluna especial para o portal da revista cristã mais influente do Brasil]

16 Comentários

  1. Sávio
    20 de abril de 2012

    Quer dizer que todos estes artistas aí em cima citados são conhecidamente do candomblé? Alguns de fato tem um identificação com esta religião afro, mas outros somente cantam em trechos de suas músicas referências desta religão, e até referências cristãs. Pelo que entendo uma parte nem religião tem ou diz que professa. Na realidade muitos hoje, nem religião dizem que tem, inclusive muitos cristãos falam o mesmo.
    Eu particularmente só gosto de escutar o que me acrescenta, principalmente no viés cristão, não perco meu tempo ouvindo baboseira, seja a título de música cristã ou não!

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  2. Erick
    20 de abril de 2012

    Sou Baiano, mas passei toda minha vida em São Paulo, conheço um pouco desse Brasil, atualmente estudo conservação de Arte contemporanea em Madrid e certamente cada vez que leio esse blog, me sinto mais feliz em ser brasileiro e muito mais grato em ser cristão! Melhor ainda é saber que existem pessoas que compartilham das minhas inquietações.

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    • Marcela
      27 de abril de 2012

      faço minhas as suas palavras.

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  3. Lourenço
    20 de abril de 2012

    Parabéns pelo texto – é muito bom ver a sua pesquisa, o estudo mesmo que tem feito sobre a nossa cultura cristã no Brasil.
    Quanto à música, eu sempre me pergunto porque não produzimos, ou não é tão divulgado, a música cristã verdadeiramente brasileira. Só o que vejo nas rádios, nos mp3 e consequentemente nas igrejas é sempre aquele rock americano, musicas traduzidas, basta pegar a “setlist” dos nossos ministérios de louvor e ver que 30% ou 40% são da banda Hillsong.
    Eu amo as músicas dos nossos irmãos americanos, ouço rádio gringa e tudo, mas sinto falta de ouvir um “João Alexandre” nas nossas congregações por exemplo. É claro, existe aí os cantores gospel mas que na sua maioria só criam pra vender, e o que vende é o q o povo gosta – e normalmente é sempre aquele estilo das “traduções” que citei acima. Espero, oro, pra que mais bandas brasileiras em sua essência apareçam e consigam espaço, asim como vocês [Palavrantiga] que eu, e a minha mãe! kkk Dona Berenice curtimos muito!
    Na Paz dAquele que nos amou e morreu por nós,
    Lourenço

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  4. Vinicius
    20 de abril de 2012

    Ótimo assunto abordado Marcos.
    A maneira a qual classificam de musica religiosa não é muito relevante, considerando as origens musicais de cada gênero, existem muitas raízes que não somente influenciam musicas chamadas de “mundanas´´ mesmo musicas do meio gospel.
    Um abraço

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  5. Juliana Rodrigues
    20 de abril de 2012

    Oi Marcos!

    Fazendo dois comentários em um. A visão que Adélia Prado compartilha no post anterior, leva-me a crer que, não só é possível e real encontrar a fé cristã sendo expressa na música popular brasileira (num sentido geral), como é possível encontrar aquele “desejo pronfundo” que nos impulsionar à arte (seja para apreciá-la ou para criá-la). E arte, como ela disse, está em tudo, justamente porque esse desejo está em tudo que emana do ser humano.
    Acho um saco ter que dividir em estilos, gêneros, ritmos, etc. isso é só pra ajudar mesmo a gente a se comunicar. Eu preferia chamar apenas de a arte afriana, a arte portuguesa, a arte tupiniquim. Enfim… A arte brasileira… Tudo a mesma coisa pra mim! E é lindo demais isso! Quando não estigmatizamos a arte, diferenciamos ela por conta da sua origem, porque, no fundo, a origem é interna, interior… E quem mais conhece esse interior, se não Ele!

    Paz! =)

    Ju

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  6. Rafael Porto
    20 de abril de 2012

    Alegria, Marcos!

    Finalmente, um texto à altura das discussões que você é capaz de propôr, rapaz. Mas vamos aos argumentos:

    1) Tom Jobim tem muito de Candomblé sim, apesar de também compor canções que flertam com o D-s criacionista cristão. Não diria que Noel e outros sambistas clássicos tenham feito esta distinção entre “baixo” e “alto” samba, separando o que está ligado ou não ao candomblé e à ubanda.

    2) Me incomoda que a música afro seja tratada como brasileiríssima, enquanto a música cristã é taxada como “religiosa”. Mas é fato que eles souberam criar uma identidade rítmica própria, independente às letras religiosas.

    Tenho de dar o braço a torcer: a riqueza percussiva dos cantos africanos foi muito moldada no Brasil, assumindo novas características. Mas nós não soubemos fazer o mesmo.

    O canto religioso, pela rigidez do próprio termo, não sofreu muitas alterações aqui. É recente a ideia de produzir música cristã com ritmos não convencionais (VPC, Exodus, Rebanhão, etc).

    Ao invés de criarmos uma identidade rítmica, fizemos o caminho inverso — o que não é um erro, necessariamente. Nos apegamos ao discurso e esquecemos do ritmo. Em dado momento, pegamos algo já pronto fora e trouxemos para dentro da igreja — o que chamou como “lavado e santificado”.

    Hoje, por exemplo, forró é sinônimo de louvor de fogo em cultos mais pentecostais. Mas o forró não é produção nossa, mas deles. O que muda em um forró comum e um religioso? O discurso. Talvez por isto nossa música continuará sendo classificada como “religiosa”.

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  7. Romulo Silva
    20 de abril de 2012

    Sei que os mais ricos musicalmente e culturalmente se preocupam com a roupagem uniforme das bandas destacadas no meio Gospel, pois têm se entregado ao Rock, principalmente British Rock… Eu, particularmente, adoro isso. O Rock é um ritmo que surgiu da intensidade para ser intenso. Cristianismo é intenso. Não levanto aqui aquele Rock ‘avacalhado’ de zuada e chiado. Mas guitarras melódicas e pratos… e tambores retumbantes. Adoro isso. Claro que se pode derramar em ritmos diversos, aliás, como já foi dito, o que importa é o discurso. Não me categorizo como rockeiro, apesar de ser viciado em… Mas escuto tudo aquilo que carrega uma essência, uma mensagem útil. Alegria sempre!

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  8. Romulo Silva
    20 de abril de 2012

    Ah! Não posso deixar de relatar que não condeno de forma alguma a versonificação de canções gringas… Ouço muito bandas de fora, pois a mensagem cantada por cantores como Matt Redman, Chris Tomlin, David Crowder, Gateway, o próprio Hillsong (que na verdade é australiano), Jesus Culture, Jeremy Camp, Kari Jobe, Skillet, RED, Switchfoot e outros, contrastada com aquilo que tem sido cantado por igrejas brasileiras populares, são pérolas, infelizmente. Encontrar bandas aqui como Palavrantiga, Resgate e outras ‘igrejáis’ que cantam o Cristo, é muito difícil.

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  9. Tiago
    21 de abril de 2012

    Brilhante Marcos!

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  10. Neto Nascimento
    21 de abril de 2012

    Argumentação!
    É a argumentação que me prende a esse lugar como leitor. Esse caráter de cabeça pensante que ‘descoisifica’ a arte cristã, ou ainda, expressa a importância da cultura para o ser social crente em Deus.
    Quando analisamos ou pensamos no que vem a ser cultura somos tentados, e devemos ser, a voltar na raiz da palavra… Quer dizer, cultura é algo que vem lá dos tempos da colonização, aliás, bem antes! vem do Latim, da palavra cultus (culto).
    Pois é, eu também fiquei pasmo… Imagina que ouvi isso do meu professor marxista e materialista numa aula de Literatura Brasileira. Em fim, a palavra cultus carrega a semântica do cultivo da terra, portanto cultura é o cultivo dos costumes de um determinado meio social passado aos seus antecessores. E só pra enriquecer mais isso tudo temos a palavra culto, que seria o cultivo do divino na própria alma, ou seja, o culto a Deus é cultura e viver a cultura social como cristão é cultivar Deus na cultura em que se vive… É isso tudo que leio quando passo por seus textos! Eles são plausíveis, finalmente alguém começou a desmistificar as coisas.
    Como ministro de louvor que sou, ex seminarista do Ctmdt tenho todo esse universo cristão firmado em mim, mas o meu eu literato, que lida com a arte da linguagem é confrontado todos os dias dentro da sala de aula… E como aprendo! Me expondo a cultura e a erudição saí do casulo ‘profético’ e me vi mais humano ainda, diria até que mais dentro da proposta de dignificação do evangelho. Em fim, esse devaneio todo aqui é pra dizer que tem valido a pena passar por esse lugar, sinto-me edificado e discipulado… Meus 23 anos agradecem, juntamente com o ser existencialista que sou, ou que pelo menos me sinto. Parabéns Marcos.

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  11. Diego
    25 de abril de 2012

    Só espero que a herança que o mais do que contraditório movimento gospel deixe para a próxima geração não seja o abuso do evangeliquês e a consequente inexistência de uma lírica poética, mas que seja um cantar a vida cristã cotidiana.

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  12. Fabrício Fábrega de Oliveira
    26 de abril de 2012

    Creio que no meio evangélico, há músicas e “músicas”. Músicas que realmente tiveram uma inspiração Divina e “músicas que não tiveram inspiração nenhuma, pura forsação de barra. Assim como no meio secular também há músicas que foram Divinamente inspiradas, músicas que levantam questionamentos e que ajudaram a mudar realidades. A música cristã deve servir não somente para exaltar a Deus mas também para levar as pessoas a uma reflexão e contribuir para a sociedade.

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  13. Tom
    17 de maio de 2012

    Genial…..uma leitura clara, estimulante e traz uma discusao sobre a Musicalidade Gospel (hoje não há como ignorá-la). È impossível trafegar no universo musical sem reconhecer contribuição desse movimento na história da Musica Brasileira, e quando é feito um levantamento histórico como esse, (compreendemos, e) caem alguns mitos sobre a influencia da música Afro…querendo nós ou não somos resultados dessa miscigenação! Ou seja, uma de suas “pernas” pertence a nós, não copiamos, nem devemos demonizar esse estilo que surgiu por razões culturais (mistura de brancos negros e Índios) geográficas (as grandes navegações, escravidão) e principalmente pela vontade do nosso Pai!

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  14. Neto
    31 de julho de 2012

    Sem desmerecer todo o teu tensionamento, mas lembrar o Clube da Esquina foi uma das melhores palavras!

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  15. Juliano Dencker
    9 de agosto de 2017

    Para compreender as musicas de candomblé e umbanda é necessário compreender a natureza, Fogo, terra, água e ar, os orixás são as forças destes elementos e suas qualidades, sem essa total compreensão não é possível entender o candomblé.

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