Aquela trilha está virando caminho

Postado por: em abr 22, 2013 | 10 Comentários

Texto transcrito da palestra ministrada no teatro anexo da UFPE, na Conferência Oxigênio.

29 de Setembro de 2012

 

Me sinto presenteado com uma plateia tão disposta como a que eu vejo hoje aqui. Acordar tão cedo pra ouvir um cara que não dorme faz tempo e por esse e outros motivos corre o risco de falar tanta coisa maluca, fruto talvez de algum sonho louco que brota entre as insônias de um jovem papai.

Muito obrigado pela presença de vocês. Estar no Nordeste, na capital pernambucana, conversando com vocês no Oxigênio me deixa super animado.

Vocês já perceberam que vivemos hoje um tempo de simultaneidades; enquanto assistimos a ascensão do movimento gospel, além disso, o reconhecimento deste circuito cultural pelo mercado tradicional e a grande mídia, distinguimos também um grupo de artistas cristãos espalhados de norte a sul do país pensando e fazendo arte para além dos paradigmas que sustentam a grife gospel.   

 

É curioso notar que embora compartilhem de espaços consagrados ao circuito gospel, tocando em igrejas, congressos de jovens e acampamentos, as músicas desses novos artistas já estão nas playlists de rádios não religiosas, sabemos que alguns deles já tocam no circuito tradicional da noite, em bares, casas de shows e surgem como principal atração de eventos emergentes e modernos como este do Oxigênio. Esse é um tempo de simultaneidades. Ascenção e reconhecimento para o movimento gospel e, ao mesmo tempo, uma grande expectativa sobre esses outros artistas que apontam para um pós-movimento-gospel.

 

Acredito que é por isso que vocês estão aqui hoje enchendo esse teatro com tantos sonhos. Existe uma grande esperança de que a gente,  novos artistas e novos apreciadores, consiga vencer algumas tensões geradas pelo movimento gospel e que finalmente a nossa arte encontre sua identidade para além da militância religiosa e panfletária, assumindo seu lugar na cultura brasileira de forma mais íntima. 

 

Basicamente a minha tese se resume na seguinte afirmação: existe uma música brasileira (popular) de raiz cristã. O que é diferente daquilo que João Alexandre, Stênio Marcius, Gerson Borges e outros amigos já afirmaram fazer: uma música cristã (sacra) com raízes brasileiras. Discernir esse detalhe é crucial para aplicação das novas ferramentas que temos construído para a atuação dos artístas, ouvintes e compositores, no campo da cultura.

 

Uma música brasileira de raiz cristã. Essa é a tese. Esse é o lugar onde me situo e que anteriormente chamei de pós-gospel, hope rock ou esperances tropical, numa tentativa de oferecer outra nomenclatura para essa nova canção que fazemos hoje. Labor interrompido simplesmente por entender que era mais urgente apresentar o conteúdo (espiritual e intelectual) deste pós-movimento-gospel do que ficar matutando um nome vazio, sem de alma.

 

O que isso quer dizer?

 

Todo artefato cultural tem na sua própria “genética” uma matriz principal que sustenta seu ser artístico. Para a tropicália de Gil e Caetano foi a batida de João Gilberto e a confissão antropofágica de Oswald de Andrade. Para o Mangue Beat foi o Maracatu, a música eletrônica e a ideologia de Josué de Castro. Claro, estou tocando nos pilares destes movimentos, não vou passar pela alvenaria, nem muito menos pela pintura. Então, não será absurdo dizer que na confecção da nossa brasilidade a vivencia comunitária da fé, a experiência peculiar com a Boa Nova em si, se torna o mais importante pilar. Essa experiência aliada a uma independência musical –  que nos permite redescobrir o cancioneiro popular –  tem o poder de construir uma musica brasileira exuberante!

 

O que nos faz brasileiros não é só uma língua, uma história e uma geografia em comum, é a liberdade de falar português com outra hermenêutica, com outra origem, com uma esperança absurda. De certa forma é uma brasilidade de gente que se sabe temporária, peregrina, uma brasilidade hebraica, de quem é por enquanto e logo não será mais – daí o desapego, o descompromisso que nos torna mais leves para a invenção.

 

O termo “raiz cristã” quer dizer o vínculo profundo e vital com a Boa Nova e a pessoa histórica de Jesus Cristo, não se referindo imediatamente às estéticas do cristianismo enquanto religião, dogma, arte ou rito. É a base, o principio, a parte oculta que sustenta e providencia os elementos fundamentais para a vida do sujeito. É ela, a raiz, quem estabelece a origem da cosmovisão e nutre os organismos culturais que crescem a partir desse vínculo profundo e vital.

 

A música brasileira de raiz cristã tem na palavra, ou na linguagem, seu veículo de agregação e separação – a letra de uma música pode criar encontro e desencontros, dialogar ou distanciar. E por ser quase impossível afastar o som do sentido na vivencia musical do cristão, é preciso considerar que a força confessional vai evidentemente moldar seu gosto musical às formas do hino e da canção. Sempre filtrando as músicas através da Mensagem. Concluo que quando usamos a expressão “música brasileira” queremos falar particularmente da forma musical chamada “canção”:  música e letra para ser entoada, palavra cantada.

 

A minha tese, que aqui apresento, ficaria da seguinte forma:  A Nossa Brasilidade no Cancioneiro Popular. A história da canção brasileira de raiz cristã ou como a música brasileira acolheu ou rejeitou a experiência da Boa Nova. Após apresentar os exemplos, faço um desafio para todos nós no sentido de reavaliarmos o nosso lugar nas artes e no entretenimento e mais uma vez considerar a superação das tensões deixadas pelos nossos pais. 

 

Vamos aos exemplos:

 

Vinícius de Morais, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Clara Nunes, Ivete Sangalo, Jorge Ben Jor, Lenine, Céu, Maria Betânia, Elis Regina, Ivan Lins, Maria Gadú, Seu Jorge, Roberta Sá, para não falar dos sambistas Martinho da Vila, Arlindo Cruz e Lecy Brandão, artistas da música erudita como Villa Lobos, Carlos Alberto Pinto da Fonseca, todos eles e muitos outros do rock nacional também se renderam à uma confissão religiosa, a saber a Umbanda e o Candomblé. Ora militando de forma explicita, ora apenas repetindo modelos, os principais nomes da música popular brasileira estão confessando publicamente a sua fé afro, mas ninguém os chamam de religiosos. Sim! Eles nem mesmo inventaram um selo para essa confissão! Poderiam chamar isso tudo de Umbanda Music, mas não. Somente a confissão cristã merece o título de música religiosa, ou gospel music. Isso não soa estranho? Somente no Brasil se designa um único pseudo-gênero pelo teor da sua confissão ou pelo circuito cultural em que ele atua; o termo música gospel fica mais estranho se pensamos através desse vetor.

Mas, se a minha tese está correta, deve existir no nosso cancioneiro algum samba sem farofa, alguma dança sem pipoca.  E se eu estiver certo, estas canções devem brotar fora do circuito religioso convencionado nos últimos 30 anos, antes do boom gospel e carismático que assumiu pra si a divulgação da música de confissão cristã, deixando – aparentemente – um vácuo na música popular. Essas canções populares que fazem analogia a fé cristã ou se utilizam de símbolos da fé evangélica, amigas da Boa Nova, insistem em aparecer justamente porque nem todos compositores não filiados aos movimentos religiosos deixaram de ser influenciados pelo Evangelho de alguma forma.

 

Décadas atrás, um sambista carioca chamado Nelson Cavaquinho cantou assim:

 

 

O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente

O amor será eterno novamente
É o Juízo Final, a história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer

Juízo Final – Élcio Soares e Nelson Cavaquinho

 

 

La, lalaia laia laia, lalaia laia laia, lalaia laia laia, ia
La, lalaia laia laia, lalaia laia laia, lalaia laia laia

Graças a Deus minha vida mudou
Quem me viu, quem me vê, a tristeza acabou
Contigo aprendi a sorrir
Escondeste o pranto de quem sofreu tanto
Organizaste uma festa em mim
É por isso que eu canto assim

La, lalaia laia laia, lalaia laia laia, lalaia laia laia, ia
La, lalaia laia laia, lalaia laia laia, lalaia laia laia

Minha Festa – Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito

 

 

A palavra utilizada aqui não se refere ao vocabulário evangeliquês, ou ao idioma bíblico-teológico. A palavra aqui é analógica. A mensagem envolvida pela pele colorida da arte. A história da redenção apresentada no Evangelho na pessoa de Jesus Cristo pode encontrar expressões análogas no idioma português brasileiro dentro da história da canção nacional, principalmente nos temas de amor sacrificial e na relação pai e filho. As analogias redentivas encontradas na canção brasileira reforçam a leitura de uma música tupiniquim de raízes cristãs.

 

Precisamos aprender a olhar. Podemos e devemos aprender mesmo com a certeza escatológica de que tudo isso aqui um dia desaparecerá . Vamos olhar com mais cuidado para a nossa música.

 

Lá no início daquilo que chamamos música popular brasileira já havia gente que não se sentia a vontade com a temática ou a visão de mundo da umbanda music. Em algum momento de suas carreiras, estes artistas cantaram outro universo diferente daquele cantado pela grande maioria da MPB. Entre eles podemos citar o Noel Rosa, Braguinha e Almirante, o nosso sambista realista Nelson do Cavaquinho – que acabamos de ouvir – o Tom Jobim, Milton Nascimento e a turma do Clube da Esquina, Los Hermanos, Legião Urbana e o mais famoso de todos: Roberto Carlos.

 

Certamente vamos encontrar outros geniais artistas nessa pesquisa. Gente que contrapõe naturalmente à confissão afro, ou que as vezes com uma pitada de provocação diz assim: “A vila tem um feitiço sem farofa/ Sem vela e sem vintém/Que nos faz bem”. (Noel Rosa).

 

Certamente vamos encontrar artistas como o grande Elomar Figueira de Mello cujo lema é “servir a Deus e cantar o sertão”.

 

Ainda ouviremos mais duas canções, antes de partir para o final.

 

Vou te contar
Os olhos já não podem ver
Coisas que só o coração pode entender
Fundamental é mesmo o amor
É impossível ser feliz sozinho

O resto é mar
É tudo que não sei contar
São coisas lindas
Que eu tenho pra te dar
Vem de mansinho a brisa e me diz
É impossível ser feliz sozinho

Da primeira vez era a cidade
Da segunda o cais e a eternidade

Agora eu já sei
Da onda que se ergueu no mar
E das estrelas que esquecemos de contar
O amor se deixa surpreender
Enquanto a noite vem nos envolver

 

 Wave – Tom Jobim

 

A próxima canção faz referencia a nossa finitude. Estilo e mensagem me transportam para um estado de reflexão bem parecido com aqueles que surgem dos tempos devocionais e meditativos. Uma obra de arte:

 

Quem me diz
Da estrada que não cabe onde termina
Da luz que cega quando te ilumina
Da pergunta que emudece o coração

Quantas são
As dores e alegrias de uma vida
Jogadas na explosão de tantas vidas
Vezes tudo que não cabe no querer

Vai saber
Se olhando bem no rosto do impossível
O véu, o vento o alvo invisível
Se desvenda o que nos une ainda assim

A gente é feito pra acabar

A gente é feito pra dizer
Que sim

A gente é feito pra caber
No mar

E isso nunca vai ter fim

Feito pra Acabar  – Marcelo Jeneci

 

 

Queridos amigos, nosso desafio é explorar possibilidades e limites para o desenvolvimento da nossa brasilidade. Inventando na liberdade que a Boa Nova nos concede e em diálogo com a cultura de rua, aquilo que é feito fora dos templos, percebendo as raízes e as deixas que a própria cultura nos dá.

 

Assim vamos, sem justificar a nossa arte com o argumento religioso proselitista e utilitarista. Assumindo nosso lugar no meio do mundo. Indo para além do maniqueísmo gospel/secular, desconsiderando a altura desses muros. Fazendo musica sem esperar um nome para esse novo movimento. Porque, como diz Riobaldo em Grande Sertão Veredas, “muita coisa importante falta nome” .

 

Se vocês me permitem, gostaria de mostrar uma canção inédita que acabamos de gravar e que entra no próximo disco do Palavrantiga. Ela me provoca nesse sentido. Se chama “Rio Torto” e vocês serão os primeiros a ouvir. Posso?

 

 

Já faz um tempo que eu me apego

Naquele livro que anuncia

Minha liberdade

Ninguém pega

Vê se entende:

 

O Amor é um rio

Eu reconheço

Seu leito é feito de águas claras.

E desde cedo a minha alma

Não tem medo!

 

É  por isso que eu vou neste Rio que corre sem pressa

Navegante que sou

Sei que tudo é presente pra ela e eu

(navegar)

 

Só tenho medo quando esqueço

– E a memória é tudo aquilo que nos falta –

Que o dia todo é transparência pra essa Graça

 

É por isso que eu vou

 


Nesse Rio Torto

Sem fronteiras pra ninguém

Sem perder o rumo

(Eu) vou me encontrar também.

 

 

     Rio Torto – Marcos Almeida

 

 

O maior bem que um artista pode fazer ao mundo é ser honesto com sua criação, sem medo do feio e do belo, sendo artista apenas. Chegou a hora de avançar!

Lembrem-se disso: uma trilha no início se parece com um desvio, mas um dia acaba virando caminho. Muito obrigado.

 

 

10 Comentários

  1. Viviane Reis
    22 de abril de 2013

    Que lindo Marcos Almeida!
    Que Tese maravilhosa!
    É isso mesmo.
    É de mentes como a sua que a
    juventude Cristã brasileira precisa!
    Depois vou reler com mais calma e atenção para refletir melhor!
    Parabéns e obrigada!

    Reply
  2. Eva Caroline
    22 de abril de 2013

    Tive o prazer de participar dessa palestra, e sem sombras de dúvidas pude voltar com a mente renovada quanto a nova proposta de música que vem surgindo. Parabéns ao Palavrantiga por andar nesse caminho, bem como as outras bandas que estão surgindo no cenário nacional com o mesmo objetivo. Essa de quebrar os muros nos possibilita um contato bem maior com quem ainda não conhece a boa nova.

    Reply
  3. Bibiana
    22 de abril de 2013

    ”O maior bem que um artista pode fazer ao mundo é ser honesto com sua criação, sem medo do feio e do belo, sendo artista apenas. Chegou a hora de avançar!”

    Espero que esse assunto tome escalas cada vez mais elevadas de debate no mundo artístico, que pra mim é o mundo real!

    Reply
  4. Danny Naara
    22 de abril de 2013

    Bom demais relembrar estes momentos 😀
    Esse ano teremos mais um pouco, na Conferência Oxigênio 2013?

    Reply
  5. Guilherme
    22 de abril de 2013

    Meu caro. EXCELENTE TEXTO. Conciso, que Deus continue te iluminando.

    Reply
  6. Evandro Santos Ferreira
    22 de abril de 2013

    Parabéns pelo tema, mas acho que esse novo conceito musical foi criado pela banda Catedral, só que de maneira um pouco mais polêmica por causa da mudança de conceitos que estava ligado ao ativismo religioso. No caso do Palavrantiga é diferente pois vocês já estão trilhando desde de o inicio por esse caminho, por isso não deve ter atrito com fanáticos religiosos Até por que vcs estão construindo a carreira para um outro p[úblico

    Reply
  7. Leandro Vieira
    22 de abril de 2013

    Admirável!
    Toda arte é a expressão do divino que em nós habita.
    Difícil é entender o que realmente é arte.
    Neste novo olhar que se mira, inevitável que teremos também como em outros movimentos cópias e reproduções sem autenticidades!
    Mas o novo sempre é o novo e isso é evangelho!
    Abs, parabéns pela ótica!

    Reply
  8. Sílvio Garcia
    22 de abril de 2013

    Quanta inteligência!
    Por isso sigo, curto, compartilho e concordo com o Nossa Brasilidade!
    Parabéns!

    Reply
  9. Eloísa Carla
    24 de abril de 2013

    Muito lindo… tão difícil aceitar que os alienados religiosos não reconhecem a arte da criação!
    aguardo o maior alcance da Boa Nova…

    (8) vem agora, quase não há mais tempo, vem com teu passo firme, o rosta de criança. A maldade já vimos demais…
    –Clube da esquina <3

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  10. Rebeca Mendes
    25 de janeiro de 2016

    bom demais!!

    Reply

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