Trabalho e Aventura – Sérgio Buarque de Holanda

Postado por: em jan 9, 2013 | 4 Comentários

 

 

Sérgio Buarque de Holanda

Ele está entre os maiores intelectuais brasileiros do século XX. Sérgio Buarque de Holanda, o pai de Chico Buarque e tantos outros (foram sete ao todo), é mais conhecido por sua obra prima “Raízes do Brasil”. Aqui lemos uma parte instigante do famoso livro, onde ele distingue dois tipos de homens; o aventureiro, desejoso de novas sensações e consideração pública, e o trabalhador, aquele que deseja segurança e paz. Leia agora direto da fonte.

 

“Nas formas de vida coletiva podem assinalar-se dois princípios que se combatem e regulam diversamente as atividades do homens. Esses dois princípios encarnam-se nos tipos do aventureiro e do trabalhador. Já nas sociedades rudimentares manifestam-se eles, segundo sua predominância, na distinção fundamental entre os povos caçadores ou coletores e os povos lavradores. Para uns, o objeto final, a mira de todo esforço, o ponto de chegada, assume relevância tão capital, que chega a dispensar, por secundários, quase supérfluos, todos os processos intermediários. Seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore.

Esse tipo humano ignora as fronteiras. No mundo tudo se apresenta a ele em generosa amplitude e , onde quer que se erija um obstáculo a seus propósitos ambiciosos, sabe transformar esse obstáculo em trampolim. Vive dos espaços ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes.

O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente, que, no entanto, mede todas as possibilidades de esperdício e sabe tirar o máximo proveito do insignificante, tem sentido bem nítido para ele. Seu campo visual é naturalmente restrito. A parte maior do que o todo.

Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às ações que sente ânimo de praticar, e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro – audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem – tudo, enfim, quanto se relacione com a concepção espaçosa do mundo, característica desse tipo.

Por outro lado, as energias e esforços que se dirigem a uma recompensa imediata são enaltecidos pelos aventureiros; as energias que visam à estabilidade, à paz, à segurança pessoal e os esforços sem perspectiva de rápido proveito material passam, ao contrário, por viciosos e desprezíveis para eles. Nada lhes parece mais estúpido e mesquinho do que o ideal do trabalhador.

Entre esses dois tipos não há, em verdade, tanto uma oposição absoluta como uma incompreensão radical. Ambos participam, em maior ou menor grau, de múltiplas combinações e é claro que, em estado puro, nem o aventureiro, nem o trabalhador possuem existência real fora do mundo das ideias. Mas também não há dúvida que os dois conceitos nos ajudam a situar e a melhor ordenar nosso conhecimento dos homens e dos conjuntos sociais. E é precisamente nessa extensão superindividual que eles assumem importância inestimável para o estudo da formação e evolução das sociedades.

Na obra da conquista e colonização dos novos mundos coube ao “trabalhador”, no sentido aqui compreendido, papel muito limitado, quase nulo. A época predispunha aos gestos e façanhas audaciosos, galardoando bem os homens de grandes voos. E não foi fortuita a circunstância de se terem encontrado neste continente [Brasil e Américas], emprenhadas nessa obra, principalmente as nações onde o tipo do trabalhador, tal como acaba de ser discriminado, encontrou ambiente menos propício.”

 

(Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, pág.44, 26 ed., Cia das Letras)

4 Comentários

  1. Adair Neto
    9 de janeiro de 2013

    Isso mostra como nossa sociedade é injusta ao considerar bem apenas um (ou alguns) tipo de pessoa.

    PS: amei quando fez referência a Platão, dizendo “mundo das ideias”.

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  2. Daniel Gizo
    9 de janeiro de 2013

    Ainda me incomodam muito as visões dualistas. A “luta eterna” entre o bem e o mal, o certo e o errado… Mas é prático olhar para onde esses casos se aplicam. De que lado você está Marcos? Aventura ou trabalho?

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  3. Raphael Carvalho
    23 de fevereiro de 2013

    A pergunta é: eu sou um aventureiro feliz? ou a grama do meu visinho trabalhador ainda é mais verde?

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  4. Mateus Gandini
    27 de fevereiro de 2013

    Não há dualidade alguma no texto de Sérgio, mas sim dois focos de pensamento: “Ambos participam, em maior ou menor grau, de múltiplas combinações e é claro que, em estado puro, nem o aventureiro, nem o trabalhador possuem existência real fora do mundo das ideias”.
    Ótima reflexão, Marcos.
    Fale-nos sobre o homem cordial também! 😉

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