Teoria do Eu / Miguel Sanches Neto

Postado por: em maio 20, 2013 | Um comentário

 

Por Miguel Sanches Neto | Para o Valor Econômico. Gentilmente liberado pelo autor para ser lido aqui no Nossa Brasilidade.

 

Em uma conversa recente com Luiz Antonio de Assis Brasil, romancista que atua como professor em oficinas de escrita criativa em Porto Alegre, ele me disse que o mais difícil é fazer os alunos escreverem em terceira pessoa. Fiquei pensando nos motivos que levaram a essa hegemonia da primeira pessoa e no que isso representa para a ficção atual. Seria mesmo perigosa tal marca?

Sempre houve um preconceito muito grande em relação aos escritores que contam histórias a partir de uma voz que se confunde com a sua. Há uma ideia de que a primeira pessoa é menos ficcional do que a terceira. Então, a grande literatura seria sempre um exercício de invenção narrativa, em que se produz o apagamento de um eu narrador, mesmo que este não coincida com a pessoa que assina o livro. A lógica dessa postura é a seguinte: você tem que sair do seu eu. Mais: você tem que sair de qualquer eu. Só o outro é ficcional.

Por trás de tal raciocínio, há algumas construções de sentido históricas. Quem popularizou tal postura foi o estruturalismo, que valoriza mais a linguagem e seu sentido imanente do que os indivíduos, as pessoas atrás de cada texto. Assim, a terceira pessoa ou narrativa neutra (“objetual”) seria uma forma de fortalecer a linguagem em detrimento de registros pessoais, tidos como toscamente espontâneos.

Em sentido inverso, nos anos de 1960, o eu se torna a grande medida literária de um grupo de jovens que confundia vida e escrita, os “beats”, produtores de uma ficção muito colada, enquanto tema e ritmo, às condições marginais de existência que levavam. Não bastava construir uma história com alto grau de ficcionalização, era preciso que essa história remetesse às vivências de quem as escrevia.

A grande luta nesse campo foi entre a despersonalização da linguagem (proposta estruturalista) e a da customização existencial dos textos (“beatniks“).

O estruturalismo, conquanto senil, não está morto, porque tem guarida em conceitos e preconceitos cultivados com orgulho de classe pelos acadêmicos, enquanto a escrita próxima do eu (acusada de plebeiamente mercantilizada) só cresce com as redes sociais.

O advento da internet, que produziu uma explosão na divulgação daquilo que Michel Foucault chamou de vidas-clarão (“A vida dos homens infames”), vem fortalecendo a primeira pessoa. Na rede, todos escrevem como se se inventassem, dando-se a ver como linguagem. Não queremos apenas que a foto nos blogs nos represente, mostrando-nos como somos ou sonhamos ser, mas que a nossa trajetória e a linguagem que dá conta dela digam quem somos. A ficção, exercida nesse âmbito da pretensa sinceridade, quer ser consumida como verdadeira. Isso muda o próprio estatuto do ficcional, que não está mais na força imaginativa de histórias, mas no relato que se quer sincero enquanto matéria de ficção e não como verdade histórica, verificável.

Então temos uma inversão de sentido que passa despercebida por quem nega essa cosmovisão contemporânea. É tão ficcional como qualquer outro aquele texto que se diz colado ao narrador, pois este é um eu assumido como heterônimo, como constructo.

Se a preferência pela primeira pessoa nas narrativas atuais atende a uma lógica do Facebook (seria a “facebuquização” da escrita), a aderência ao biográfico é apenas aparente. No fundo, todos estão fazendo ficção, porque se operou uma contaminação ficcional da autobiografia, das memórias, dos depoimentos. Falamos do eu para levar o leitor a um outro de nós, que nos representa ao mesmo tempo em que está fora dos contornos de quem somos.

Assim, a primeira pessoa, numa ficção, nunca é a primeira pessoa de uma comunicação real. Quando se diz, no campo da literatura, eu, este nunca corresponde de forma plena ao nome que está na capa dos livros. A radioatividade literária altera as formas de vinculação com o real.

A onda contemporânea da autoficção é a culminância desse primado. O autor não só usa a primeira pessoa como aparece nas dobras da ficção com o nome próprio, mas este já vem despido de um sentido cartorial, de uma densidade de representação, de tal forma que ele funciona mais como de linguagem.

O grande salto dessa tendência que só cresce na produção contemporânea é a dúvida quanto à própria existência do eu. Não se acredita mais em um eu uno e estável, transportado agora para o terreno de areias movediças que é a ficção. Esse indivíduo/personagem/linguagem não é uma instância minimamente confiável e sim o que tenho chamado de uma teoria do eu. Essa teoria, que não remete a uma pessoa com uma face sólida, é produto de ficção e não mais um documento de identidade.

Assim, a primeira pessoa, tão avassaladora na narrativa de hoje, não tem um compromisso de verdade fora do âmbito da imaginação e da expressão literária. Esse eu que se afirma tanto nos livros é sempre construído, e portanto artificial. Se há semelhanças de trajetórias entre o eu do narrador e o eu do autor (aquele que recebe os direitos autorais – porque essa me parece a melhor definição do autor em tempos de profissionalização da escrita), essas semelhanças só valem como curiosidades, porque esse eu é uma invenção para fins narrativos. Ele não é reflexo de uma trajetória. É a trajetória que quer funcionar como linguagem, valendo como escrita, não como vida, como depoimento inocente.

Contrariando a tese estruturalista, a essência do literário não está no afastamento do eu, mas justamente na edificação de um eu que pode estar contido no emissor ao mesmo tempo em que estará muito além dele, nos domínios da arte.

Em seus textos de autoficção, J.M. Coetzee usa a terceira pessoa do singular para falar de um personagem chamado J.M. Coetzee, e esse recurso, puramente retórico, não o afasta da trajetória do seu ser ficcional, embora crie uma sensação de distanciamento. Essa falsa terceira pessoa, também utilizada por Cristovão Tezza em “O Filho Eterno”, é apenas escancarar essa teorização do eu de que falo.

Midas do imaginário, o ficcionista transforma tudo o que toca em uma construção de linguagem. Seja em que pessoa for, remeta ou não ao nome do autor, os narradores podem até nascer de um impulso testemunhal, mas a própria maquinaria narrativa trata de operar os distanciamentos. É que a ficção, ao condensar o real, se afasta dele, inventando um outro plano de ser, bem menor do ponto de vista da extensão, mas muito maior como representação.

A primeira pessoa em ficção não é um crime de lesa-linguagem e sim uma forma de chamar a atenção para o valor de verdade (filosófica) da ficção, ao mesmo tempo em que inviabiliza o seu valor factual.

Escrevemos em primeira pessoa porque queremos estar, paradoxalmente, longe e perto de nossas experiências. Porque nos vemos como um produto ficcional de nós mesmos.

N.E.: As frases em negrito são obra deste “editor”.

Miguel Sanches Neto é ficcionista, autor, entre outros, de “Chove Sobre Minha Infância”, “Um Amor Anarquista” e “A Primeira Mulher”

 

 

1 Comentário

  1. Mar_D
    27 de maio de 2013

    Texto bom ao extremo. Meu pensamento sempre tendeu nesse sentido. É verdade que somos compostos por vários “eus”, e isso é assustador. Nós somos quem queremos, quem imaginamos, quem desejamos ser, e quem temos que ser. Todos os nossos papeis convergem em um. Essa figura/forma que somos. Jung já falava da Persona – imagem pública, máscara – e eu penso como a geração facebook tropeça nisso, se perde na Persona, e deixa de se importar com o que ela realmente é, dentro dela. Melhor termo ainda não vi “Midas do imaginário”.
    Copiando o texto lá pro tumblr.
    =)

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