SOBRE COMO OUVIR MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

Postado por: em abr 16, 2013 | 23 Comentários

Quando Milton Hatoum disse para José Castello, “materialmente, não quero muito, espiritualmente, quero tudo”, estava confessando o desejo de muitos artistas; a transcendência. Só a literatura contemporânea interessada na superfície da realidade, no papo chatíssimo da desconstrução autoral, num tipo não-conceitual de arte sem artista, tem deixando escapar outros objetivos. Talvez o próprio desaparecimento da literatura. Um tipo de vingança inconsciente desses novos escritores sem fogo, nem brasa.

 

Mas, o ponto de apoio daquilo que convencionamos chamar de cultura sempre foi uma sensibilidade espiritual que orienta e direciona a criação artística. Pensando agora na música brasileira, tento recordar o tempo que comecei a escrever canções, aos 14 anos. Não conhecia, ainda, a tradição cristã. Minha educação religiosa se deu em volta de uma espiritualidade bem diferente da que eu acredito hoje – meus pais viviam num isolamento filosófico fundamentalista, mas deixaram os filhos estudar em colégio católico. No entanto, escrevi dezenas de canções. Os temas mais variados para um adolescente. Do amor não correspondido ao tema para o dia do professor, falei do aperto no lotação, da sociedade hipócrita, da festa, das estrelas no céu e da falta que todo jovem sente. Meu primeiro mentor chegou a censurar aquelas canções dizendo que eu não tinha crivo para escolher assunto, qualquer coisa entrava na letras – um divertido e bem sincero caos! Contudo, posso garantir aos leitores que antes da minha conversão nunca fiz um música para o ‘coisa ruim’. Acredite, era isso que os religiosos me diziam na época: o que você escreveu antes se não era pra Deus, era pra quem? Perguntavam, sem querer ouvir resposta. Eles satanizavam tudo que não tinha utilidade eclesiástica ou proselitista. Muito embasados em casos isolados de artistas que ganhavam (ou perdiam) a vida em cima do discurso esotérico-ocultista.  Não é difícil entender porque nesses últimos anos comemoro quando vejo os novos crentes dialogando com a cultura sem medo de fantasmas criados por uma religião recalcada.

 

Como compositor e ouvinte, descobri muitas maneiras de ouvir canções. Tem gente que as ouve como um simples objeto sonoro. Outros conseguem perceber na canção uma representação social, um hino não intencional de uma religiosidade-secular, um veiculo político, uma exposição das forças inconscientes, o retrato psicológico do autor ou da época… Enfim, são tantas leituras! Tantas formas de ouvir! Fora o discurso da indústria cultural, da lógica de mercado, dos produtos culturais, a coisa da manipulação e tal e tal. Mas, o viés que me instiga a ouvir música popular brasileira, hoje, é exposto nos temas da identidade e da espiritualidade. Esses temas, tão caros à música sacra ou religiosa, transbordam do cancioneioro popular e formam um caminho que nos ajuda a reconhecer semelhanças confessionais nas diversas formas que o brasileiro encontrou para cantar a vida que experimenta. Vejam isso:

“Quero cantar só pras pessoas fracas

  Que estão no mundo e perderam a viagem

  Quero cantar o blues com o pastor e o bumbo na praça

Vamos pedir piedade, pois há um incêndio sobre a chuva rala

Somos iguais em desgraça

Vamos cantar o blues da piedade

Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem ”

(Blues da Piedade – Frejat/Cazuza)

 

A estética da recepção, ou como se dá a fruição da obra de arte, é um tema muito interessante. Suspeito que o ouvinte, o receptor, se confunde com o compositor a medida que interfere na obra, e na sintaxe dela. É o que estamos fazendo agora. É possível dizer que não havia nenhuma intenção ‘religiosa’ no letrista quando escreveu alguns versos com linguagem cristã; “piedade”, “fraqueza”, “pastor” ou a chocante “somos iguais em desgraça”. Expressões como essas fazem muito sentido para um crente como eu, mas seria absurdo determinar o que Frejat e Cazuza quiseram dizer ‘objetivamente’ com essas palavras. Sobretudo atenção: nenhuma das canções que ouvirmos com essa interferência dialogal e analógica continuará a mesma, porque não estamos ouvindo só com os ouvidos, mas com o espírito! Vamos alterar o que está sendo dito, inventar coisas. Estamos trocando idéias com o repertório! Colocamos essas letras em conversa com outros autores do passado, apresentamos o repertório popular para  quem escreve no presente e é bem certo que tudo isso vire uma leitura agradável para os meus filhos no futuro. Leitura que pode nos fazer mais humanos. Isso porque quando ouvimos uma canção não somos apenas ouvintes, mas um exemplo legítimo de compositor.

23 Comentários

  1. Lethicia Caroline
    17 de abril de 2013

    Nossa… Como é possível, alguém expressar reflexões que tem passado pela sua cabeça?

    Muito bom o texto, diz muito!

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  2. Gabriela Coelho
    17 de abril de 2013

    Tive que passar por aqui, foi uma daquelas vontades que a gente não resiste, pra expressar uma gratidão ao Deus Grandão e tão chegado por permitir-nos a liberdade, a identidade, a brasilidade…
    Muitas vezes o que está posto nesse sistema ‘gospel’ de ser cristão nos condiciona a repetições tão óbvias, que têm tudo, menos vida real.
    Eu creio no Jesus crucificado e ressucitado, absoluto em glória e beleza, tão grande que fica do meu tamanho pra ficar ao meu lado. Que me permite ser, pensar e até desfazer meus pensamentos por reconhece-Lo maior que meus conceitos tão limitados.
    Enfim, estou eu aqui pra dizer como me alegra encontrar essas canções, encontrar gente de verdade, que fala de coisas de verdade, do dia, da vida, do amor… eu sinto a simplicidade do evangelho, é desse jeito que me toca, é puro, límpido!
    Sinto-me num Brasil de brasilidades mil, acho um máximo perceber a graça de ser aceita com minhas características tão únicas e idealizadas pelo meu Criador, minha brasilidade, nossa brasilidade como sugere tão bem este espaço.
    E não toh falando de aceitar tudo, sem considerar princípios, nem nego a transformação que a graça opera em nós, ao contrário considero impossível me encontrar com esse AMOR tão terno em graça e não ser transformada.
    Então, pra não dizer que não falei das flores, quero fechar esse atrevimento aplaudindo a poesia que suas composições cantam, na verdade acredito que nós é que somos cantados nelas.

    Deus abençoe!

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    • Cássio C.
      21 de abril de 2013

      Tenho esse mesmo pensamento! 😀

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  3. Rômulo
    17 de abril de 2013

    A pior parte fica diante da realidade de hoje. Analisando os cantões evangélicos do Brasil, nesta gospelândia, ainda, é satânico e carnal aquilo que não é litúrgico… Como é belo e inspirador o cancioneiro popular… como ele comunica vida e morte… como ele exalta e esmaga… enfim, como há pluralidade e como é bonito isso… como é belo contemplar a vida e celebrar as alegrias, mas sem aterrar com as desgraças… como é bom refletir e só, às vezes, deixar o tempo passar. Alimenta a alma… nos faz humanos…

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  4. Guilherme Reis
    17 de abril de 2013

    Parabens, Marcos…

    Excelente Texto….
    e que venha o livro!!!…

    Sou ouvinte e acompanhate da Banda Palavrantiga…

    E só tenho elegios e admiração ao seu trabalho.

    Que Deus possa continuar te usando e te abençoando cada dia mais!!..

    Abrs

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    • Marcos Almeida
      18 de abril de 2013

      Amém!Nós todos!

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  5. Bruno Carmanin
    17 de abril de 2013

    Exegese, autor, escritos, ouvinte rs. Demais Marcos, como sempre, demais.

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  6. Thiago André
    17 de abril de 2013

    Cara, muito bom. Como sempre, no alvo. Deus abençoe

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  7. Vanessa
    17 de abril de 2013

    “muitas maneiras de ouvir canções”
    “não estamos ouvindo só com os ouvidos, mas com o espírito! Vamos alterar o que está sendo dito, inventar coisas. Estamos trocando idéias com o repertório”
    Gostei muito da forma como se expressou e concordo!!
    Várias canções parecem vivas.. um dia me dizem algo de uma forma e no outro já entendo outra coisa.. a música conversa comigo e ao mesmo tempo se cala e eu falo. Um som, um jeito, uma letra, uma melodia.. as vezes pareço até dançar sobre a canção!.. ou até passear de mãos dadas com alguém..!

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  8. Sobre como ouvir música popular brasileira. - De Olho na Real
    18 de abril de 2013

    […] Postado em seu blog pessoal: Nossa Brasilidade […]

    Reply
  9. Sobre Como Ouvir Música Popular Brasileira - Underdot | Underdot
    18 de abril de 2013

    […] Por Marcos Almeida, guitarrista e vocalista da banda Palavrantiga, no blog Nossa Brasilidade. […]

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  10. Leonardo Galdino
    19 de abril de 2013

    Muito bom o texto, Marcos. Parabéns!

    Só uma correçãozinha: em vez de “que estão no mundo e perderam a coragem”, o correto é “que estão no mundo e perderam a viagem”.

    Forte abraço!

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    • Marcos Almeida
      22 de abril de 2013

      Obrigado pela edição Leonardo! Você está certíssimo! Abraço!

      Reply
      • Leonardo Galdino
        22 de abril de 2013

        😉

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  11. Itan Alan
    21 de abril de 2013

    Nossa interpretação é um grande intertexto que fazemos com a canção atual e com todas as outras imagens, metáforas e informações que acumulamos. “Isso porque quando ouvimos uma canção não somos apenas ouvintes, mas um exemplo legítimo de compositor.”
    Fantástico o texto!

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  12. Marcos Almeida
    25 de abril de 2013

    “Há uma fome em nós que nenhuma prosperidade material, que nenhum sucesso material pode saciar” ADÉLIA PRADO [nossabrasilidade.com.br/adelia-prado-aula-magna-o-poder-humanizador-da-poesia/]

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  13. Léo Valente
    25 de abril de 2013

    Seria ótimo ter palavras para expressar a liberdade que surge na alma ao ler textos como esse.

    Ainda não as encontrei.

    De qualquer forma, Marcos, muito obrigado por ser instrumento de Deus, trazendo voz a uma visão diferente da vida.

    Sejamos benção!

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  14. Nossa Brasilidade » As dez mais belas e santas canções do nosso hinário popular.
    18 de maio de 2013

    […] Se interessar, escrevi dois textos específicos sobre o assunto:  1 Sobre como ouvir música popular brasileira 2. Candeia, Mano Brown, eu e […]

    Reply
  15. Diogenes
    21 de setembro de 2013

    Cara você é um grande homem de Deus nessa geração a religiosidade feriu e tapou nossa visão pra todas essas coisas, valeu pelo post! E sou de total acordo com a sua visão!

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  16. Nossa Brasilidade » O Homem – Os Paralamas do Sucesso
    22 de outubro de 2013

    […] em mim que conecta essa música de Rua com aquela música de Templo é o espírito. Assim como Milton Hatoum , “materialmente, não quero muito, espiritualmente, quero tudo”. Confesso essa fome espiritual […]

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  17. Valder Damasceno
    26 de novembro de 2013

    Almeida, como vai meu amigo?

    Também encontrei uma canção do Cazuza que me chamou atenção, “Quando eu estiver cantando”.

    “Tem gente que recebe de Deus quando canta
    Tem gente que canta procurando Deus
    Eu sou assim com a minha voz desafinada
    Peço a Deus que me perdoe no camarim
    Eu sou assim
    Canto pra me mostrar, de besta, de besta
    Quando eu estiver cantando, não se aproxime
    Quando eu estiver cantando, fique em silêncio
    Quando eu estiver cantando, não cante comigo
    Eu só canto só
    O meu canto é minha solidão, é a minha salvação
    Porque meu canto redime meu lado mau
    Porque meu canto é pra quem me ama, me ama, me ama
    Quando eu estiver cantando, não se aproxime
    Quando eu estiver cantando, fique em silêncio
    Quando eu estiver cantando, não cante comigo
    O meu canto é minha solidão, é a minha salvação
    O meu canto redime meu lado mau
    Porque meu canto é o que me mantém vivo
    e o que me mantem vivo

    Tem gente que recebe de Deus quando canta
    Tem gente que canta procurando Deus
    Eu sou assim com a minha voz desafinada
    Peço a Deus que me perdoe no camarim
    Eu sou assim
    Canto pra me mostrar, de besta, de besta
    Quando eu estiver cantando, não se aproxime
    Quando eu estiver cantando, fique em silêncio
    Quando eu estiver cantando, não cante comigo
    Eu só canto só
    O meu canto é minha solidão, é a minha salvação
    Porque meu canto redime meu lado mau
    Porque meu canto é pra quem me ama, me ama, me ama
    Quando eu estiver cantando, não se aproxime
    Quando eu estiver cantando, fique em silêncio
    Quando eu estiver cantando, não cante comigo
    O meu canto é minha solidão, é a minha salvação
    O meu canto redime meu lado mau
    Porque meu canto é o que me mantém vivo
    e o que me mantem vivo”

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  18. Moises Pacheco
    29 de maio de 2018

    “não estamos ouvindo só com os ouvidos, mas com o espírito! Vamos alterar o que está sendo dito, inventar coisas. Estamos trocando idéias com o repertório!”

    Cara isso é um afago pra alma, saber que é possível extrair fé de uma cultura que não se apresenta embasada nessa fé. Eu costumo dizer que a minha voz não é minha, mas apenas o eco das outras vozes que me cercam, seja em forma de palavras, ou, em forma de silêncio, e, vendo dessa maneira, é impossível, no nosso contexto, se esquivar da influência da fé culturalmente falando, ela existe, é real, e mesmo que não seja admirada por todos, é fator determinante no modo como a nossa expressão se faz.

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  19. CH
    29 de maio de 2018

    Marcos Almeida tocando meu coração mais uma vez, e despertando um espírito artístico desconhecido ainda dentro de mim. Ler seus textos ou te ouvir é uma viagem trascedente através do caráter e da personalidade se identificando com o que há de mais bonito nessa vida.

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