Poema Sinfônico – um roteiro para os sons.

Postado por: em maio 26, 2013 | Sem comentários

 

Sempre defendi uma interdependência entre os campos do fazer humano. Então, justamente por sabermos que não existe independência no sentido de separação e isolamento, mas sim uma interatividade, um diálogo e uma troca de influências entre as modalidades da vida é que compreendo a arte, por exemplo, totalmente conectada com as esferas filosófica, religiosa, econômica, social e política. Quando criamos, ou quando escrevemos fazemos uma peça multidimensional, existe ali uma leitura da realidade bem ampla; seja por causa de um programa pré-estabelecido  na concepção da obra ou por ela ser, a tempo, um objeto de apreciação para outras pessoas como o compositor. Toda obra de arte existe no mundo. Fora daqui, não teria o sentido que damos a ela. Toda obra de arte existe num mundo específico. Pergunte aos moradores de Marte – se eles existissem – o que pensam sobre o teto da capela Sistina. Nem precisa ir tão longe, pergunte aos índios isolados da Amazônia peruana onde eles estavam em 1967 nas finais do Festival de Música Popular Brasileira, quando Sérgio Ricardo deu aquele piti. Toda arte precisa de um mundo para existir.

Mas, uma coisa sempre me inculcou; como um compositor de música instrumental trabalha? A música é construída sem nenhuma orientação? Será que ela em si basta e não precisa de relações intencionais com um tipo de programa? Daí caiu nas minhas mãos um livro bem legal, o História da Música Ocidental (Grout & Palisca, Ed. Gravida). Veja o que ele diz sobre um tipo de música conhecida como “poema sinfônico” – aquela forma orquestral , segundo Sadie, “em que um poema ou programa fornece uma base narrativa ou ilustrativa” para a organização dos sons.

“Há dois tipos de programas para um poema sinfônico: um, a que podemos chamar “filosófico”, situa-se no campo genérico das ideias e das emoções, sem narrar episódios ou incidentes particulares; Les preludes de Liszt, e a maior parte dos outros poemas sinfônicos deste compositor, tem um programa deste tipo. O outro tipo de programa, a que podemos chamar “descritivo”, exige que o compositor traduza ou procure ilustrar musicalmente episódios não musicais; a maior parte dos programas de Berlioz são deste tipo. Não podemos distinguir em absoluto os dois tipos, uma vez que os programas filosófico incluem muitas vezes elementos descritivos e os programas descritivos têm geralmente um alcance mais geral; a distinção baseia-se apenas no maior ou menor destaque dado aos pormenores descritivos. A música presta-se na perfeição aos programas de tipo filosófico, e em muitos casos podemos detectar ou desconfiar da existência de tais programas por trás de composições que não são apresentadas como musica programática, como a 5a Sinfonia de Beethoven, a terceira de Schumann, as sinfonias de Bruckner e as sinfonias puramente instrumentais de Mahler. A descrição, em contrapartida, é mais difícil de conciliar com a natureza da linguagem musical. Como é evidente, quanto mais concreto e mais prosaico (ou seja, quanto menos susceptível de ser considerado como símbolo de alguma ideia ou emoção universal) for o acontecimento que se pretende descrever, maior será o risco de o compositor produzir um trecho que não ultrapasse o nível da mera curiosidade, uma excrecência irrelevante em termos de estrutura musical. O talento do compositor manifesta-se, nestes casos, na sua capacidade de integrar os acontecimentos e os sons imitados no conjunto musical, subordinando-os aos processos da música absoluta. Exemplos conseguidos são, entre outros, o canto dos pássaros na Sinfonia Pastoral de Beethoven, a trovoada ao longe no terceiro andamento da Synphonie fantastique de Berlioz e a ilustração do dia da Ressurreição no  finale da 2a Sinfonia de Mahler

 

Se este gênero entrou em declínio no séc. XX, como aponta Stanley Sadie, por causa da rejeição às ideias românticas, quando importantes compositores optaram substituir um programa poético por noções de abstração e independência da música, ainda assim precisamos suspeitar de qualquer ideia de música pela música. O que colocaram no lugar do poema? O que estava orientando a organização dos sons? Sempre haverá uma direção, uma estrutura, uma escala, sim, um escolha.

 

Enquanto você pensa nisso, ouça o belíssimo poema sinfônico indicado pelos autores Grout e Palisca no início do texto e a monumental interpretação da 2a Sinfonia de Mahler pelo brilhante maestro Leonard Bernstein como a London Symphony Orchestra em 1974.

Franz Liszt Les Preludes

Sinfonia No. 2 “Resurreição” de Gustav Mahler, no Edinburgh Festival 1974.

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