17 de Janeiro / Cadê a poesia?
Dezessete
A poesia está em toda parte. Nos anúncios de jornal, nas frases de caminhão, nos muros da cidade, nas bancas de revista, em qualquer parte lá está ela dizendo o que meras palavras agrupadas na frente de outras não conseguiriam dizer. É certo que ela não está trancafiada naqueles famosos livros de poesia, que a muitos causa um certo medo. García Márquez – o fantástico criador de “Cem anos de solidão” – disse da seguinte forma : “a ideia de que a ciência só concerne aos cientista é tão anticientífica como é antipoético pretender que a poesia só concerne aos poetas”.
Mas, é o poeta do povo, Patativa do Assaré, quem chega agora para comunicar uma verdade: que para fazer poesia não precisa ter diploma não doutor. Sua arte chegou às vistas de acadêmicos e varredores, tratou o romance, usou a rima, o verso livre, contou histórias e emocionou muita gente por esse mundo a fora, sem completar ao menos cinco meses de estudo.
Eu venho dêrne menino,
Dêrne munto pequenino,
Cumprindo o belo destino
Que me deu Nosso Senhô.
Eu nasci pra sê vaquêro,
Sou o mais feliz brasileiro,
Eu não invejo dinheiro,
Nem diproma de dotô.
(Trecho de O Vaqueiro – Patativa do Assaré)
Preciso chamar novamente o Nobel colombiano, Gabriel García Marquez. Ele vai citando alguns amigos das letras, no seu recente livro “Eu não vim fazer um discurso”, e como encontravam poesia até em seção econômica ou página policial de periódicos daquela época, na xícara de café, na sopa… tantos lugares! “Daniel Arango achou-a num decassílabo perfeito, escrito com letras urgentes na vitrine de um armazém: ‘Liquidação total de tudo’.”
Onde encontrar a poesia? Talvez outro brilhante artista popular, nosso pernambucano J.Borges, consiga nos dá uma pista de como deveríamos procurar por ela… Amanhã, tô de volta.
16 de Janeiro / Para que serve poesia?
Dezesseis
Diálogo rápido e rasteiro:
– Para que ficar falando de poesia em tempos difíceis como este, meu senhor? Enchentes em Minas, desabrigados no Espírito Santo, morte nos assentamentos, tudo um caos, tanta gente pedindo socorro e você com poesia?
– Devolvo a pergunta, nobre pensador: se um dia encontrássemos o mundo em completa paz – calmo e tranquilo como um grilo na beira de um rio – para que dedicar tempo e alma na leitura de um texto poético?
*
Voltamos! Se você não consegue responder a segunda pergunta, jamais encontrará resposta para a primeira.
Sim! É verdade; essa tal dúvida de espíritos extremamente ‘práticos’ não é coisa nova. Eles fazem pouco caso daquilo que não esteja dentro da sua solidariedade e humanidade – o pensamento deles é: o que eu faço é sempre mais importante. No fundo eles estão apresentando uma hierarquia de tarefas urgentes e obviamente seus interesses aparecem no topo da lista. Literatura, poesia e arte só poderiam aparecer no nosso dia a dia quando todos os verdadeiros problemas da humanidade fossem resolvidos.
Lembrei de C.S.Lewis e o seu instigante sermão “aprendendo em tempos de Guerra”.
No outono de 1939, enquanto Hitler, bem perto dali, começava a destruir a Europa com sua praticidade ariana; veja o que o velho irlandês compartilhou com a sua Igreja em Oxford:
“ O que estamos fazendo aqui a estudar filosofia e literatura medieval, enquanto a Europa está em guerra? Como podemos continuar com nossos interesses e nossas plácidas ocupações quando as vidas e as liberdade de nossos irmãos europeus estão em perigo? Não estamos também tocando violino enquanto Roma se incendeia? Para um cristão, a grande tragédia de Nero não foi que ele tocasse violino enquanto a cidade se queimava, mas que ele tocava diante do inferno.”
Proust já disse: “um escritor contemporâneo tem tudo por fazer”. Isso não significa apenas que cada geração carece de escritores e que esses devem inventar sua própria linguagem, mas que toda geração precisa de novos leitores para novos escritores. Daí ser útil profetizar aos cegos que comecem a ver. Que seus olhos consigam scanear o mundo e traduzi-lo em palavras. Ou melhor, que esses consigam pegar suas palavras e subverter este mundo!
C.S. Lewis dá mais uma dica sobre o assunto:
“O MAIOR inimigo [do acadêmico em tempos de guerra] é a ansiedade – aquela tendência de pensar na guerra e senti-la quando, na verdade, o que pretendíamos fazer mesmo era pensar no nosso trabalho. A melhor defesa é reconhecer que nisso, como em outros aspectos, na verdade, a guerra não trouxe nenhum novo inimigo, apenas piorou o antigo. Sempre temos inúmeros inimigos no trabalho. Vivemos nos apaixonando e competindo, procurando um emprego ou com medo de perdê-lo, ficando doentes e nos recuperando, acompanhando escândalos públicos. Se nos deixarmos levar, estaremos sempre esperando o término de alguma distração ou outra para, então, nos concentrar no nosso trabalho. As únicas pessoas que alcançam êxito são as que querem tanto o conhecimento que insistem em buscá-lo mesmo em condições pouco favoráveis. Nunca temos condições favoráveis. É claro que há momentos em que a pressão da ansiedade é tão grande que só o autocontrole de um super-homem seria capaz de resisti-la. Esses momentos acabam chegando tanto na guerra quanto na paz. Precisamos fazer o melhor que conseguirmos. “
Tanto na guerra quanto na paz, desejo a você uma vida inteira (na íntegra) onde solidariedade ande de mãos dadas com o amor, a fé acompanhada pelo pão, a mesa cheia de amigos e de criatividade, onde não se desperdice nada. Mas que ainda sobre coragem pra gente despedacar toda idiotice e objetividade que empobrece a nossa existência.
Termino, relembrando o nosso primeiro poeta do Guia de Leitura Poética 2012: Mário Quintana.
Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
– para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.
(Emergência )
15 de Janeiro / Anchieta
Quinze
O “apóstolo do Brasil” – como ficou conhecido o padre José de Anchieta – morreu aos 63, numa pequena cidade do Espírito Santo que hoje leva o seu nome. Isso foi há muito tempo atrás, tempão, quando a folhinha do calendário marcava 1597 – antes mesmo de Antonio Vieira, citado ontem por aqui. Ele deixou um legado social que é criticado por alguns e louvado por outros. Mas, quase ninguém fala da sua produção poética. Além de escrever peças de teatro e o catecismo que a Igreja Católica usou durante 300 anos aqui no Brasil, seu desejo pelo sagrado e pelo porvir se traduziu em versos simples, como estes, que agora passamos a ler.
Não há coisa segura.
Tudo quanto se vê
se vai passando.
A vida não tem dura.
O bem se vai gastando.
Toda criatura passa voando
Contente assim, minh’alma,
Do doce amor de Deus
toda ferida,
o mundo deixa em calma,
buscando a outra vida,
na qual deseja ser absorvida.
(Em Deus, meu Criador – José de Anchieta)
14 de Janeiro / Antonio Vieira
Quatorze
Antonio Vieira comenta sobre a amizade no seu “Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma” de 1670. O brilhante padre no mesmo parágrafo dá uma aula sobre o tema da semana, juntando filosofia, teologia e muita habilidade com as palavras – seu dom mais famoso. Vamos ouvi-lo.
“Nem deve passar sem advertência a repetição enfática, como que o Texto Sagrado depois de dizer: Assistebant coram Salomone , acrescenta: Patre ejus. Parece desnecessária esta nova expressão, pois de toda a narração da história contava ser Salomão Pai de Roboão. Mas foi nota e ponderação digníssima de se não dissimular, como de uma maior circunstância que notavelmente agrava o caso. Porque ainda que os Ministros de quem Salomão em sua vida se tinha servido junto a sua Pessoa, por serem Ministros do Rei mais sábio que teve o mundo, mereciam ser estimados, honrado e conservados no lugar que com ele tinham; só por serem Ministros de seu Pai (ainda que esse Pai não fora Salomão) se devia Roboão servir deles, e tê-los sempre junto a si, e fazer maior confiança da sua fidelidade, da sua verdade, do seu zelo e do seu amor, que do de todos os outros: Amicum tuum, et amicum patris tui ne dimiseris “Não abandones o teu amigo, nem o amigo de teu pai” Prov. 27:10: diz o Espírito Santo por boca do mesmo Salomão: o amigo que foi amigo de seu pai, não o apartes de ti. E que mais têm os amigos que foram amigos dos pais, do que os amigos novos e particulares dos filhos? Têm de mais aquela diferença que há entre o certo e o duvidoso. Os amigos novos que os filhos elegem, poderá ser que sejam bons e fiéis amigos; mas os que foram amigos dos pais, já é certo que o são, porque estes já estão experimentados e provados, aqueles ainda não. Até em Deus tem sua força esta consequência. Quando Deus apareceu a Moisés na Sarça, não sabendo ele quem era, disse-lhe: Ego Sum Deus Patris Tui: Eu sou o Deus de teu Pai: irás libertar o Povo e dir-lhe-ás, para que te dêem crédito, que o Deus de seus Pais te manda: Deus Patrum vestrorum misit me ad vos. Queria-os libertar do cativeiro de Faraó, e para os assegurar deste grande benefício, não só disse que era Deus que o podia fazer, mas que era Deus de seus Pais, para que estivessem certos que o faria. Por isso disse sabiamente Sócrates, que os mais seguros amigos são os que se herdaram. A amizade dos que se fazem de novo é duvidosa, a dos que se herdaram, e vem de pais a filhos, certa. E daqui conclui este famosíssimo Filósofo: Liberos haeredes esse non modo facultatum, sed amicitiarum paternarum. Que os filhos não só são, e devem ser herdeiros da fazenda dos pais, senão também dos amigos. Se Roboão assim como herdou a Coroa, herdara também os amigos de seu Pai, ele não perdera o Reino; mas porque herdando o Reino, quis fazer novos amigos, eles o perderam.”
13 de Janeiro / Carlos Drummond de Andrade
Treze
Meu amigo, vamos sofrer,
vamos beber, vamos ler jornal,
vamos dizer que a vida é ruim,
meu amigo, vamos sofrer.
Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
Fitar por exemplo uma estrela
por muito tempo, muito tempo
e dar um suspiro fundo
ou qualquer outra besteira.
Vamos beber uísque, vamos
beber cerveja preta e barata,
beber, gritar e morrer,
ou, quem sabe? beber apenas.
Vamos xingar a mulher,
que está envenenando a vida
com seus olhos e suas mãos
e o corpo que tem dois seios
e tem um embigo também.
Meu amigo, vamos xingar
o corpo e tudo que é dele
e que nunca será alma.
Meu amigo, vamos cantar,
vamos chorar de mansinho
e ouvir muita vitrola,
depois embriagados vamos
beber mais outros sequestros
(o olhar obsceno e a mão idiota)
depois vomitar e cair
e dormir.
(Convite Triste Carlos Drummond de Andrade)
O que a poesia brasileira já disse sobre a amizade? Bem, imagine que são tantos textos sobre essa benção relacional que precisamos fazer uma série sobre o assunto. Começamos bem! Nessa fase irônica do mineiro de Itabira, o genial Carlos Drummond de Andrade aparece no nosso sítio brigando com o mundo! É verdade, Convite Triste como esse, seu Drummond, não deixou de estar impresso em centenas de mensagens trocadas numa sexta-feira durante o expediente de trabalho. Diluídos na embriaguez de novos contatos, daqueles amigos aparentes, que teimam em surgir por aí celebrando o desespero, o desencanto…