22 de Janeiro / “eu sou brasileiro”
Vinte e dois
O ‘desbocado’ Antonio Carlos de Brito aparece aqui mais comportado do que nunca. Nos versos a seguir, ele toma emprestado o principal tema deste Blog – IDENTIDADE – e em 10 linhas ilustra a afirmação que nos inquieta: “sou brasileiro”. Vamos ouvir:
HÁ UMA GOTA DE SANGUE NO CARTÃO-POSTAL
Eu sou manhoso eu sou brasileiro
Finjo que vou mas não vou minha janela é
A moldura do luar do sertão
A verde mata nos olhos verdes da mulata
sou brasileiro e manhoso por isso dentro
da noite e de meu quarto fico cismando na beira
[de um rio
na imensa solidão de latidos e araras
lívido
de medo e de amor
(HÁ UMA GOTA DE SANGUE NO CARTÃO-POSTAL – Antonio Carlos de Brito )
21 de Janeiro / Sábado Sarau
Vinte um
Neste sítio recebo não só a visita de nomes ilustres, mas, alguns leitores inspiradíssimos e desconhecidos (pelo menos por enquanto) que andam deixando por aqui a sua palavra. A poesia deles enriquece demais essa brasilidade que é toda nossa.
É o caso do Igor José. Ele me enviou um livro inédito de sua autoria cheio de poemas. Os versos que vamos ler agora fazem parte dessa sua estreia. Vejam aí:
NA ESQUINA
Na esquina o poema me espera
Em cada árvore,
Em qualquer direção.
Na rua o poema me espreita
Atrás dos postes
Em cada curva.
Na esquina da rua o poema se revela
Em todo ato,
Em cada fato.
No poema a esquina é o meu lugar,
Na rua o poema é o meu luar,
O poema me espera e me espreita
Na rua, na esquina, em todo lugar.
( do livro “Não sei ser poeta” – Igor José)
A gentileza de José inspirou uma nova ideia para o nosso Blog. Que tal fazermos no sétimo dia da semana, o “Sábado Sarau”? Taí! Você pode enviar suas poesias, músicas, danças, pinturas, qualquer arte, que publicarei aqui para todo mundo ver.
Enviem seus devaneios, pensamentos, na métrica ou fora da métrica, em versos livres ou alexandrinos, não interessa a técnica apenas a verdade. Enviem!
Para isso, escolha:
Carta
Av. Fortaleza 1500 Ap 203
CEP 29101 575
Bairro Itapoã Vila Velha – ES
A/C Marcos Almeida
20 de Janeiro / Murilo Mendes
Vinte
Parece que descobri um gênio. Estou aqui espantado com sua capacidade de produzir linguagem , de falar da Eternidade, de nos distraír com sua imagética. Senhoras e senhores, diretamente de Juiz de Fora: Murilo Mendes.
Viver organizando o diamante
(Intuindo sua face) e o escondendo,
Tratá-lo com ternura castigada.
Nem mesmo no deserto suspendê-lo.
Mas viver consumindo de sua graça.
Obedecer a este fogo frio
Que se resolve em ponto rarefeito.
Viver: do seu silêncio se aprendendo.
Não temer sua perda em noite obscura.
E do próprio diamante já esquecido,
Morrer, do seu esqueleto esvaziando:
Para vir a ser tudo, é preciso ser nada.
(São João da Cruz- Murilo Mendes)
19 de Janeiro / Gastronomia
Dezenove
Alguns não sabem disso, mas, tenho colocado o texto a seguir como uma placa sobre a minha mesa. Quero olhar para ele todos os dias na intenção de que ele faça parte da minha estrutura: “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria e precedendo a honra vai a humildade” (Provérbios 15:33). Encontrei essa preciosidade num livro da Bíblia que de fato não é só uma reunião de livros milenares; é uma escola de vida prática. Tão prática que tem hora que me assusto.
Veja o que encontrei agora. Descobri que Jacó abençoou Aser, um dos seus doze filhos, com uma benção epecial: da boa gastronomia!
“Aser será famoso por sua comida deliciosa,
doces e guloseimas próprios de reis” (Genesis 49.20)
Que beleza! Comida, bebida, doces, festa, banquete, vinho, alegria.. a Bíblia acontece na vida real e é para mim o roteiro da vida real.
Logo que li esse trecho, lembrei de uma poetisa maranhense não muito conhecida.
E daí imaginei a gente juntar poesia e gastronomia aqui na cozinha. Quem sabe mais do que isso: a cozinha pode se tornar um lugar de encontro entre poetas e a Maravilhosa Graça, essa que nos abençoa e nos reconcilia com Deus.
Fiquei animado com a ideia!
Voltando à poetisa lembrada no meio desses devaneios, ela apareceu recentemente numa antologia que está quebrando recordes de venda: “Os cem melhores poemas brasileiros do século”. Liguei banquete com cozinha e cozinha com Utensílios. Aí está:
Para extrair
do alumínio seu lúmen
usaria
o desusado, exaurido verbo “haurir”
Arearia
panelas
à beira de um rio, mergulhada
no alumínio luzidio
– “haurindo-o” –
polindo-lhe
a índole de água
e o ímpeto de prata
com grãos
de ouro de areia
arearia
“ourada”
submersa em seu domínio
(Utensílios – Lu Menezes)
18 de Janeiro / Ferreira Gullar
Dezoito
Sempre fiquei meio grilado com o jeito amargo dos poemas de Gullar. Mas, me parece que se olharmos para dentro do seu texto com olhar mais atento, vamos encontrar aquele esperancês que todo poeta tem que usar para sobreviver à angustia, dentro desse triste exercício da narração, do sentir o mundo com as entranhas.
Aqui vai um poema de “Dentro da Noite Veloz”, seu mais festejado livro até hoje. Onde a velocidade e ferocidade do seu cotidiano transpareceu em letras que revelam uma época para muitos maldita; a ditadura militar.
Agosto 1964
Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.
O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu a compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.
Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema
uma bandeira
(Agosto 1964 – Ferreira Gullar)