A Linguagem Poética / Décio Pignatari

Postado por: em fev 21, 2012 | 3 Comentários

Quarenta e sete

 

A poesia parece estar mais do lado da música e das artes plásticas e visuais do que da literatura. Ezra Pound acha que ela não pertence à literatura e Paulo Prado vai mais longe: declara que a literatura e a filosofia são as duas maiores inimigas da poesia.

De fato, a poesia é um corpo estranho nas artes da palavra. É a menos consumida de todas as artes, embora pareça ser a mais praticada (muitas vezes, às escondidas). Uma das maiores raridades do mundo é o poeta que consegue viver só de sua arte. Há dois mil anos, o poeta latino Ovídio dizia que as folhas de louro (com as quais se faziam coroas para poetas e heróis) só serviam mesmo para temperar o assado. E como poderia ser diferente? Como encontrar um modo de remunerar o trabalho e o ofício de um poeta? Rilke ficou treze anos sem fazer um único poema; Valéry, vinte e cinco anos! Outros consumiram boa parte da vida escrevendo uma obra (sem exclusão de outras): Dante, vinte anos, para a Divina Comédia; Joyce, dezessete, para a “proesia” do Finnegans Wake; Pound, quarenta para Os Cantos; Goethe, cinquenta e cinco, para o Fausto; Mallarmé, trinta, para o Lance de Dados. Mas não é porque houve um Pelé que você vai deixar de jogar futebol; não é porque há uma Gal que você vai deixar de cantar.

 

Pignatari, amigo dos Campos

O poeta é aquele artista que não está no gibi. E é aquele que ajuda a fundar culturas inteiras. Não dá pra entender a cultura portuguesa sem Camões; a inglesa sem Shakespeare; a italiana sem Dante; a alemã sem Goethe; a grega sem Homero; a irlandesa sem Joyce.

 

Poesia é a arte do anticonsumo. A palavra “poeta” vem do grego “poietes= aquele que faz”. Faz o quê? Faz linguagem. E aqui está a fonte principal do mistério. O signo verbal forma um sistema dominante de comunicação… E aí é que está: o poeta não trabalha com o signo, o poeta trabalha o signo verbal.

Uma estorinha: O grande pintor impressionista Degas vivia querendo fazer um poema — sem conseguir. Um dia, chegou-se para o seu amigo Mallarmé e disse: “Stéphane, idéias maravilhosas não me faltam — mas eu não consigo fazer um poema”. Respondeu o Mestre: “Meu caro Edgar, poemas não se fazem com ideias — mas com palavras”.

O poeta faz linguagem para generalizar e regenerar sentimentos, diz Charles Peirce.

Uma adivinha: Mallarmé falava de uma flor que está “ausente de todos os buquês”. Que flor é esta?

Charles Morris faz uma esclarecedora distinção entre os signos. Diz ele que há signos-para e signos-de. Um signo-para conduz a alguma coisa, a uma ação, a um objetivo transverbal ou extraverbal, que está fora dele. É o signo da prosa, moeda corrente que usamos automaticamente todos os dias. Mas quando você foge desse automatismo, quando você começa a ver, sentir, ouvir, pesar, apalpar as palavras, então as palavras começam a se transformar em signos-de. Fazendo um trocadilho, o signo-de pára em si mesmo, é signo de alguma coisa — quer ser essa coisa sem poder sê-lo. Ele tende a ser um ícone, uma figura. É o signo da poesia. Você vai ver, mais adiante, que o signo-para é um signo por contigüidade, enquanto o signo-de é um signo por similaridade.

Para o poeta, mergulhar na vida e mergulhar na linguagem é (quase) a mesma coisa. Ele vive o conflito signo vs. coisa. Sabe (isto é, sente o sabor)que a palavra “amor” não é o amor — e não se conforma…

A resposta para adivinha mallarmaica: a flor que está ausente de todos osbuquês é a palavra flor.

O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema. Está sempre criando e recriando a linguagem. Vale dizer: está sempre criando o mundo. Para ele, a linguagem é um ser vivo, O poeta é radical (do latim, radix, radicis = raiz): ele trabalha as raízes da linguagem. Com isso, o mundo da linguagem e a linguagem do mundo ganham troncos, ramos, flores e frutos.

É por isso que um poema parece falar de tudo e de nada ao mesmo tempo. É por isso que um (bom) poema não se esgota: ele cria modelos de sensibilidade. É por isso que um poema, sendo um ser concreto de linguagem, parece o mais abstrato dos seres. É por isso que um poema é criação pura — por mais impura que seja. É como uma pessoa, ou como a vida: por melhor que você a explique, a explicação nunca pode substituí-la. É como uma pessoa que diz sempre que quer ser compreendida. Mas o que ela quer mesmo é ser amada.

competência e desempenho

O lingüista Chomsky distingue dois níveis no fato lingüístico: o nível de competência e o nível de desempenho. O nível de competência refere-se ao nível de domínio técnico da linguagem (aos três anos de idade, uma criança já domina as estruturas básicas de seu idioma materno). O nível de desempenho é aquele em que o falante cria em cima do nível de competência. É claro que esses níveis não são separados: a criança aprende criando. Todos nós criamos, mas a (des)educação que recebemos nos orienta no sentido da descriação, no sentido de permanecermos apenas ao nível de competência.

 

Muita inibição ao nível do desempenho é provocada pela insegurança ao nível da competência. É nisto que se apoia a censura, de fora e de dentro (autocensura), para impedir que você crie.

( no livro: “O que é comunicação poética” do professor Décio Pignatari )

3 Comentários

  1. Lindrielli Rocha
    24 de fevereiro de 2012

    Li esse post ontem às pressas, e confesso que ele não fez muito sentido. Meio inconformada, retornei agora de manhã pra ler o post novamente, li duas vez! E é lindo.
    Acho que essa foi a primeira vez depois das aulas chatissímas de Semiótica que alguém cita Peirce e eu não tenho vontade de dormir. Agora vejo que a culpa não foi da Semiótica, ou de Peirce, foi da minha professora. rs.
    Se tu puder, em outra hora fale mais sobre Linguagem Poética.

    Abraço.

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    • Marcos
      24 de fevereiro de 2012

      Ei Lindrielli, esse texto é brilhante. Coisas do Décio Pignatari. Bom que gostou!

      Reply
  2. Arnaldo Antunes / Sobre a origem da poesia | nossabrasilidade.com.br
    9 de março de 2012

    […] com sua ocorrência, um pouco desse passado. Lembro-me de ter lido, certa vez, um comentário de Décio Pignatari, em que ele chamava a atenção para o fato de, tanto em chinês como em tupi, não existir o verbo […]

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