A Linguagem Poética / Décio Pignatari
Quarenta e sete
A poesia parece estar mais do lado da música e das artes plásticas e visuais do que da literatura. Ezra Pound acha que ela não pertence à literatura e Paulo Prado vai mais longe: declara que a literatura e a filosofia são as duas maiores inimigas da poesia.
De fato, a poesia é um corpo estranho nas artes da palavra. É a menos consumida de todas as artes, embora pareça ser a mais praticada (muitas vezes, às escondidas). Uma das maiores raridades do mundo é o poeta que consegue viver só de sua arte. Há dois mil anos, o poeta latino Ovídio dizia que as folhas de louro (com as quais se faziam coroas para poetas e heróis) só serviam mesmo para temperar o assado. E como poderia ser diferente? Como encontrar um modo de remunerar o trabalho e o ofício de um poeta? Rilke ficou treze anos sem fazer um único poema; Valéry, vinte e cinco anos! Outros consumiram boa parte da vida escrevendo uma obra (sem exclusão de outras): Dante, vinte anos, para a Divina Comédia; Joyce, dezessete, para a “proesia” do Finnegans Wake; Pound, quarenta para Os Cantos; Goethe, cinquenta e cinco, para o Fausto; Mallarmé, trinta, para o Lance de Dados. Mas não é porque houve um Pelé que você vai deixar de jogar futebol; não é porque há uma Gal que você vai deixar de cantar.
O poeta é aquele artista que não está no gibi. E é aquele que ajuda a fundar culturas inteiras. Não dá pra entender a cultura portuguesa sem Camões; a inglesa sem Shakespeare; a italiana sem Dante; a alemã sem Goethe; a grega sem Homero; a irlandesa sem Joyce.
Poesia é a arte do anticonsumo. A palavra “poeta” vem do grego “poietes= aquele que faz”. Faz o quê? Faz linguagem. E aqui está a fonte principal do mistério. O signo verbal forma um sistema dominante de comunicação… E aí é que está: o poeta não trabalha com o signo, o poeta trabalha o signo verbal.
Uma estorinha: O grande pintor impressionista Degas vivia querendo fazer um poema — sem conseguir. Um dia, chegou-se para o seu amigo Mallarmé e disse: “Stéphane, idéias maravilhosas não me faltam — mas eu não consigo fazer um poema”. Respondeu o Mestre: “Meu caro Edgar, poemas não se fazem com ideias — mas com palavras”.
O poeta faz linguagem para generalizar e regenerar sentimentos, diz Charles Peirce.
Uma adivinha: Mallarmé falava de uma flor que está “ausente de todos os buquês”. Que flor é esta?
Charles Morris faz uma esclarecedora distinção entre os signos. Diz ele que há signos-para e signos-de. Um signo-para conduz a alguma coisa, a uma ação, a um objetivo transverbal ou extraverbal, que está fora dele. É o signo da prosa, moeda corrente que usamos automaticamente todos os dias. Mas quando você foge desse automatismo, quando você começa a ver, sentir, ouvir, pesar, apalpar as palavras, então as palavras começam a se transformar em signos-de. Fazendo um trocadilho, o signo-de pára em si mesmo, é signo de alguma coisa — quer ser essa coisa sem poder sê-lo. Ele tende a ser um ícone, uma figura. É o signo da poesia. Você vai ver, mais adiante, que o signo-para é um signo por contigüidade, enquanto o signo-de é um signo por similaridade.
Para o poeta, mergulhar na vida e mergulhar na linguagem é (quase) a mesma coisa. Ele vive o conflito signo vs. coisa. Sabe (isto é, sente o sabor)que a palavra “amor” não é o amor — e não se conforma…
A resposta para adivinha mallarmaica: a flor que está ausente de todos osbuquês é a palavra flor.
O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema. Está sempre criando e recriando a linguagem. Vale dizer: está sempre criando o mundo. Para ele, a linguagem é um ser vivo, O poeta é radical (do latim, radix, radicis = raiz): ele trabalha as raízes da linguagem. Com isso, o mundo da linguagem e a linguagem do mundo ganham troncos, ramos, flores e frutos.
É por isso que um poema parece falar de tudo e de nada ao mesmo tempo. É por isso que um (bom) poema não se esgota: ele cria modelos de sensibilidade. É por isso que um poema, sendo um ser concreto de linguagem, parece o mais abstrato dos seres. É por isso que um poema é criação pura — por mais impura que seja. É como uma pessoa, ou como a vida: por melhor que você a explique, a explicação nunca pode substituí-la. É como uma pessoa que diz sempre que quer ser compreendida. Mas o que ela quer mesmo é ser amada.
O lingüista Chomsky distingue dois níveis no fato lingüístico: o nível de competência e o nível de desempenho. O nível de competência refere-se ao nível de domínio técnico da linguagem (aos três anos de idade, uma criança já domina as estruturas básicas de seu idioma materno). O nível de desempenho é aquele em que o falante cria em cima do nível de competência. É claro que esses níveis não são separados: a criança aprende criando. Todos nós criamos, mas a (des)educação que recebemos nos orienta no sentido da descriação, no sentido de permanecermos apenas ao nível de competência.
Muita inibição ao nível do desempenho é provocada pela insegurança ao nível da competência. É nisto que se apoia a censura, de fora e de dentro (autocensura), para impedir que você crie.
( no livro: “O que é comunicação poética” do professor Décio Pignatari )
3 Comentários
Lindrielli Rocha
24 de fevereiro de 2012Li esse post ontem às pressas, e confesso que ele não fez muito sentido. Meio inconformada, retornei agora de manhã pra ler o post novamente, li duas vez! E é lindo.
Acho que essa foi a primeira vez depois das aulas chatissímas de Semiótica que alguém cita Peirce e eu não tenho vontade de dormir. Agora vejo que a culpa não foi da Semiótica, ou de Peirce, foi da minha professora. rs.
Se tu puder, em outra hora fale mais sobre Linguagem Poética.
Abraço.
Marcos
24 de fevereiro de 2012Ei Lindrielli, esse texto é brilhante. Coisas do Décio Pignatari. Bom que gostou!
Arnaldo Antunes / Sobre a origem da poesia | nossabrasilidade.com.br
9 de março de 2012[…] com sua ocorrência, um pouco desse passado. Lembro-me de ter lido, certa vez, um comentário de Décio Pignatari, em que ele chamava a atenção para o fato de, tanto em chinês como em tupi, não existir o verbo […]