Eu e as flores (Nelson e Jair Cavaquinho)
Apresentamos aqui muito mais que canções populares. Nós estamos construindo um novo olhar sobre elas. Não é tanto o que olhar, mas como olhar. Insisti diversas vezes que na cultura pop, de qualquer povo, existe aquilo que chamamos de porosidade religiosa; quando expressões de espiritualidade transpiram nas confissões dos nossos artistas.
Certamente, podemos olhar uma mesma obra a partir de diversas entradas; nesta que ouviremos agora, temos pelo menos 3 aspectos muito interessantes: a chegada da Primavera com as flores, a impermanência da vida humana e o vértice poético no final, verticalizando a canção, transformando o samba em um hino ao Criador.
Com vocês, de uma pareceria com Jair do Cavaquinho, “Eu e as Flores” por ele; amigo de longa data, Nelson do Cavaquinho.
Eu e as Flores
(Nelson e Jair Cavaquinho)
Quando eu passo
Perto das flores
Quase elas dizem assim:
Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim.
A nossa vida é tão curta
Estamos nesse mundo de passagem
Ó meu grande Deus, nosso Criador
A minha vida pertence ao Senhor.
Jorge Ben quer salvar velhos, flores, criancinhas e cachorros
Quando a mística de Jorge Ben se chocou com o cotidiano.
A série “símbolos da espiritualidade na MPB” é retomada para apresentar uma canção do hit maker Jorge Ben Jor. Se você chegou agora, precisa saber que há alguns meses falamos das cem canções presentes na famosa lista que a revista Rolling Stone fez em 2007; a lista dos 100 maiores discos da música brasileira. Esses discos foram sistematicamente catalogados pela pesquisadora, socióloga e mestranda em ciências sociais, Sarah Ferreira de Toledo, a pedido do Nossa Brasilidade. Levou-se em conta as palavras de vocabulário religioso ou espiritual. De certa forma, com essa série, estamos apresentando uma outra forma de ler a nossa música brasileira. Estamos mostrando um repertório que toca a transcendência, que é religioso no seu linguajar, mas que não é litúrgico, portanto, não atende demandas eclesiásticas. Uma canção que confessa a fé, mas que não toca nos cultos; é dos palcos e das ruas.
Hoje, trouxe uma que está presente em outras listas, mas o que importa é que cabe perfeitamente na série “símbolos da espiritualidade na MPB”. Apreciem a oração de Jorge Ben que vai da invocação do Deus todo poderoso lá no céu (só no céu?) ao cotidiano inevitável onde estão velhos e flores. Seria possível um encontro entre o infinito e o temporal? Qual a relação entre a eternidade, a luz, as criancinhas e os cachorros?
Velhos, flores, criancinhas e cachorros
De: Jorge Ben Jor
Intérprete: Jorge Ben Jor
Disco: Solta o pavão
Gravadora: Universal Music
Ano: 1975
Deus todo poderoso eterno pai da luz, da luz
De onde provem todos bens e todos dons perfeitos
Imploro vossa misericórdia infinita, infinita
Deixai-me conhecer um pouco de vossa sabedoria eterna
Aquela que circunda o vosso nome
Que criou e fez que tudo faz e conversa tudo
Fazei-me digno enviando do céu prá mim prá mim
Imploro por vós e por Jesus Cristo, por Jesus Cristo
A pedra celestial angular miraculosa, miraculosa
Estabelecida por toda a eternidade
Maravilhosa, maravilhosa
Que comanda e reina convosco
Que comanda e reina convosco
Meu Deus todo poderoso
Meu Deus todo poderoso
Mas eu preciso salvar os velhos, eu preciso salvar as flores
Eu preciso salvar as criancinhas e os cachorros.
Quatro vezes Eros
A dor de cotovelo, a idealização do amor sem pecado e sem juízo, o Agape refletido em Eros e Eros tentando ser Agape. É muito amor!
Antes de apresentar minhas conclusões sobre o assunto, gosto de lembrar uma imagem que Guilherme de Carvalho exibiu na conferência L’Abri 2013 – quando fui convidado para compartilhar essa série. Ele chamou Vênus de terra, Eros de planta e Agape de Sol. Usou um exemplo simples da natureza para mostrar que se a planta fica sem o sol ela definha aos pouco e vai desfalecendo, morrendo. Eros sem sol morre e se mistura na terra – resta apenas terra. Quando o assunto é Amor, tudo começa a se desestruturar quando abrimos mão de Agape. Daí que Eros perde a força e tudo que sobra é o solo de Vênus.
Vejam agora os quatro tipos de Eros que identifiquei no nosso repertório popular, com alguns poucos exemplos, pra não tomar o tempo de vocês. Existem muitos outros na MPB – faço apenas uma amostragem. Vejam.
1. Eros maltratado (dor de cotovelo)
Quem te vê passar assim por mim
Não sabe o que é sofrer.
Ter que ver você assim sempre tão linda.
Contemplar o sol do teu olhar, perder você no ar
Na certeza de um amor
me achar um nada,
Pois sem ter teu carinho
eu me sinto sozinho
eu me afogo em solidão…
Oh Anna Julia
Nunca acreditei na ilusão de ter você pra mim.
Me atormenta a previsão do nosso destino.
Eu passando o dia a te esperar,
você sem me notar.
Quando tudo tiver fim, você vai estar com um cara,
Um alguém sem carinho.
Será sempre um espinho
dentro do meu coração.
Oh Anna Julia
Sei que você já não quer o meu amor,
Sei que você já não gosta de mim,
Eu sei que eu não sou quem você sempre sonhou,
Mas vou reconquistar o seu amor todo pra mim.
Anna Júlia (Los Hermanos), 1999
2. Eros idealizado
Tem um ditado húngaro que diz assim: “Adão comeu a maça de Eva e nós é que, ainda hoje, estamos com dor de barriga” . E se a gente pudesse voltar antes da Queda. Como seria? Baby e Pepeu respondem.
Dia após dia começo a encontrar /Mais de mil maneiras de amar
Aqui nessa cidade / O pôr do sol e a paisagem
Vem beijar luar
Doar felicidade
Tudo azul
Adão e eva
E o paraíso
Tudo azul
Sem pecado
E sem juízo
Tudo azul
Adão e eva
E o paraíso
Tudo azul
Sem pecado
E sem juízo
E todo dia livre
Dois passarinhos
Cantar
Pra esse amor
Super star
Sempre com
Tudo azul
Adão e eva
E o paraíso
Tudo azul
Sem pecado
E sem juízo
E todo dia livre
Dois passarinhos
Cantar
Pra esse amor
Super star
Sempre feliz
Sem pecado/Sem Juízo Tudo Azul (Baby do Brasil / Pepeu Gomes )
3. Eros tentando ser Agape [o Amor que redime]. Ou Eros antecipando Agape, ou Eros dizendo que pode fazer aquilo que é coisa de Agape.
Que falta eu sinto de um bem
Que falta me faz um xodó
Mas como eu não tenho ninguém
Eu levo a vida assim tão só
Eu só quero um amor
Que acabe o meu sofrer
Um xodó prá mim do meu jeito assim
Que alegre o meu viver
Eu só Quero um Xodó (Dominguinhos)
Ouvi dizer que são milagres
Noites com sol
Mas hoje eu sei não são miragens
Noites com sol
Posso entender o que diz a rosa
Ao rouxinol
Peço um amor que me conceda
Noites com sol
Onde só tem o breu
Vem me trazer o sol
Vem me trazer amor
Pode abrir a janela
Noites com sol e neblina
Deixa rolar nas retinas
Deixa entrar o sol
Livre será se não te prendem
Constelações
Então verás que não se vendem
Ilusões
Vem que eu estou tão só
Vamos fazer amor
Vem me trazer o sol
Vem me livrar do abandono
Meu coração não tem dono
Vem me aquecer nesse outono
Deixa o sol entrar
Pode abrir a janela
Noites com sol são mais belas
Certas canções são eternas
Deixa o sol entrar
Noites com Sol (Flávio Venturini/ Ronaldo Bastos)
4. Eros refletindo Agape [ espiritualidade]
Não se assuste pessoa
Se eu lhe disser que a vida é boa
Não se assuste pessoa
Se eu lhe disser que a vida é boa
Enquanto eles se batem dê um rolê
E você vai ouvir
Apenas quem já dizia
Eu não tenho nada
Antes de você ser
Eu sou, eu sou, eu sou
Eu sou amor da cabeça aos pés
Eu sou, eu sou
Eu sou amor da cabeça aos pés
E só to beijando o rosto de quem dá valor
Pra quem vale mais um gosto do que cem mil réis
Eu sou, eu sou
Eu sou amor da cabeça aos pés
Eu sou, eu sou
Eu sou amor da cabeça aos pés.
Dê um Rolê (Moraes Moreira e Galvão)
Algumas décadas atrás, um sambista carioca chamado Nelson Cavaquinho cantou assim:
O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações
Do mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente
É o Juízo Final, a história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer
Juízo Final – Nelson Cavaquinho
Na terça que vem quero apresentar algumas ideias finais sobre essa pequena série. Nos vemos!
Até lá.
“Chorou, Chorou” e “Pelo amor de Deus” – João Donato & Milton Nascimento
É possível perceber o sagrado dentro das tensões do cotidiano? João Donato e Milton Nascimento, em duas canções, dizem sim.
Tenho perguntado aqui se existe alguma expressão de espiritualidade na música popular brasileira ou se essas expressões estão confinadas ao canto litúrgico das religiões.
SOBRE COMO OUVIR MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
Quando Milton Hatoum disse para José Castello, “materialmente, não quero muito, espiritualmente, quero tudo”, estava confessando o desejo de muitos artistas; a transcendência. Só a literatura contemporânea interessada na superfície da realidade, no papo chatíssimo da desconstrução autoral, num tipo não-conceitual de arte sem artista, tem deixando escapar outros objetivos. Talvez o próprio desaparecimento da literatura. Um tipo de vingança inconsciente desses novos escritores sem fogo, nem brasa.
Mas, o ponto de apoio daquilo que convencionamos chamar de cultura sempre foi uma sensibilidade espiritual que orienta e direciona a criação artística. Pensando agora na música brasileira,