Antes da indústria já existia a fé, a religião, a igreja e a música.

Postado por: em mar 20, 2012 | 1 comentário

 

Isso que vamos ler agora é a descrição de um hábito familiar. Estabelecido no período colonial (sec. XVI a XVIII), principalmente nos tempos onde se formou o sistema econômico em volta da casa-grande, com seus senhores de engenho polígamos e católicos. O que Gilberto Freyre – insubstituível  mestre – nos informa aqui, faz a gente voltar às raízes da nossa cultura e constatar que a temática religiosa não era coisa só da missa ou dos poetas eclesiásticos: a fé chegou na casa dos brasileiros, virou letra para o som das cantigas e antes do que a gente imaginava já se cantava pra Deus, pra Jesus, para os santos e pra Maria. Olha, bem antes dos hinos protestantes desembarcarem nos portos. Bem antes da vitrola, bem antes da indústria – que indústria!? – não havia nada disso. Mas já existia a fé, a religião, a igreja e a música.

 

Quem sabe isso ajuda a clarear o que já falei por aqui: a fé não é invenção de um movimento industrial [gospel, carismático, auto-ajuda, místico, etc]. Se antes da industrialização já se cantava assim, depois dela como será? Bem, isso é coisa que temos proseado neste quintal …

Enquanto isso, vamos ler, este que dispensa apresentações, Gilberto Freyre:

 

“Nas cantigas de acalanto portuguesas e brasileiras as mães não hesitaram nunca em fazer dos seus filhinhos uns irmãos mais moços de Jesus, com os mesmos direitos aos cuidados de Maria, às vigílias de José, às patetices de vovó de Sant’Ana. A São José encarrega-se com a maior sem-cerimônia de embalar o berço ou a rede da criança:

 

Embala, José, embala,

que a Senhora logo vem:

foi lavar seu cueirinho

no riacho de Belém. 

 

E a Sant’Ana de ninar os meninozinhos no Colo:

 

Senhora Sant’Ana,

ninai minha filha;

vede que lindeza

e que maravilha. 

 

Esta menina

não dorme na cama,

dorme no regaço

da Senhora Sant’Ana. 

 

E tinha-se tanta liberdade com os santos que era a eles que se confiava a guarda das terrinas de doce e de melado contra as formigas:

 

Em louvor de São Bento

que não venham as formigas

cá dentro.

 

escrevia-se num papel que se deixava à porta do guarda-comida. E em papéis que se grudavam às janelas e às portas:

 

 Jesus, Maria, José,

rogai por nós que recorremos a vós. 

 

Quando se perdia dedal, uma tesoura, uma moedinha, Santo Antônio que desse conta do objeto perdido. Nunca deixou de haver no patriarcalismo brasileiro, ainda mais que no português, perfeita intimidade com os santos. O Menino Jesus só faltava engatinhar com os meninos da casa; lambuzar-se na geleia de araçá ou goiaba; brincar com os moleques. As freiras portuguesas, nos seus êxtases, sentiam-no muitas vezes no colo brincando com as costuras ou provando dos doces.