Rascunho de uma Genealogia
O que, onde e como penso a minha relação com a cultura brasileira.
O multifacetado povo cristão que habita nas terras continentais do Brasil é constituído por incontáveis grupos religiosos – estimados em 20 grandes denominações e diversas outras placas diluídas entre os pentecostais. No momento, parece predominar as correntes teológicas reformada (calvinista e arminiana), da prosperidade (especialmente entre os neopentecostais) e a teologia da missão integral, além, é claro, da teologia católica romana e sua versão popular. Cada um desses grupos tem uma forma de se relacionar com a esfera das artes, com seu próprio acervo de obras litúrgicas, de propaganda e de entretenimento.
Em 2004 comecei a viajar como músico remunerado pelo Brasil a fora. Eu e outros amigos formávamos a banda de apoio da cantora evangélica Heloísa Rosa. Enquanto me esforçava para ser um mediano tecladista, estava sem saber, ampliando meus horizontes espirituais a medida que conhecia diferentes comunidades de fé reunidas em diferentes igrejas, de todos os tamanhos e tipos, espalhados pelo país. Logo percebi que cada um desses grupos não era um mundo em si mesmo. De uma forma ou de outra estavam na cidade vivendo suas vidas e convivendo entre crentes e descrentes, numa sociedade plural onde cerca de 90% dos cidadãos se dizem cristãos. Fui gradualmente me aproximando da tradição reformada calvinista e encontrei nela as categorias para explicar minhas inclinações intramundanas, proféticas e não panfletárias.
Quando criamos a banda Palavrantiga no final de 2007, lançando nosso primeiro trabalho em Junho de 2008, eu já estava – nesse tempo – bem mais íntimo do pensamento neo-calvinista holandês. Tendo sido apresentado a ele pelos amigos Rodolfo Amorim e Guilherme de Carvalho. É nesse momento que fica mais patente a vocação para a cultura – entendendo a nossa comunidade de fé local como ponto de partida para uma arte brasileira tecida na Esperança. Encontrava o chão de uma tradição cristã milenar, mas ainda não sabia como traduzir isso para o português cantado nas ruas. Os holandeses eram legais mas não falavam da realidade do meu povo. Descobri uma mata virgem, fechada, difícil, insegura, perigosa. No entanto, tive certeza que deveria entrar, abrir caminho, me reencontrar por inteiro com a cultura popular depois de anos caminhando entre teólogos e pastores, nos templos em companhia de liturgistas e avivalistas.
Antes disso, havia reconhecido a necessidade de superarmos o dualismo gospel/secular, como é entendido nessas terras. Isso me ajudou a construir novas categorias de pensamento para relacionar fé cristã e cultura brasileira. Encontrei na linguagem poética uma porta de acesso entre espiritualidade e beleza. Descobri Adélia Prado numa revista de avião dizendo que arte e religião são braços de um mesmo rio. Rubem Alves chegou pra me conduzir à Guimarães Rosa, Kazantzákis, Nietzsche, Hermann Hesse… e àquelas suas próprias e boas palavras de mineiro. Então, anos depois ao ler Schaeffer, Dooyweerd e Rookmaaker, o que fiz foi categorizar o anteriormente lido, cantado, viajado e vivenciado pela minha alma.
O conceito arte brasileira de raiz cristã emergiu desse reencontro entre um cristão reformado e o repertório popular experimentado desde o berço familiar, que agora ganhava novo interesse a medida que eu descobria as confissões e as analogias tão próximas das narrativas bíblicas. Púlpito e palco continuavam bem distintos, o que mudava era a distância. Templo e rua permaneciam diferentes enquanto deixavam de ser opostos. A mensagem que saia do altar da minha igreja encontrava uma relação simbólica com as maneiras de cantar o cotidiano da vida.
Tentei copiar o antropólogo e linguista Don Richardson naquele percurso narrado em o Totem da Paz, dividido em três partes: “O mundo dos Sawis”, “Dois Mundos se Encontram” e “Um mundo transformado”. Mas vi que não podia fazer isso. Esbarrei num problema: a cultura brasileira não se mostra como um mundo isolado do Evangelho, nem mesmo o Evangelho foi confinado em templos nesses 500 anos de presença cristã nas terras tupiniquins. Diferente dos Sawis de 1962 que nunca haviam visto um homem branco e sua religião cristã, os brasileiros dos anos 2000 foram formados nela! Estava diante de uma sociedade filha do cristianismo! Ou melhor: o brasileiro é filho dos cristianismos, dos diferentes cristos, feito de cristãos de todos os tipos.
O que não deixei de copiar do meu herói canadense foi a ideia de analogia da redenção, quando costumes locais apontam verdades espirituais, ou quando verdades espirituais são aplicadas aos costumes locais. É por isso que consigo cantar Xodó de Dominguinhos e All We Need Is Love dos Beatles depois de ler Eclesiastes, Drummond e Gabriel Garcia Márquez sem nunca me esquecer que faço isso diante da face de Deus tocando a verdade da solidão tal como ela é.
Marcos Almeida
em Belém do Pará
18 de Maio 2014
26 Comentários
Alexander Stahlhoefer
18 de maio de 2014Marcos,
Excelente autobiografia/genealogia teológica. Me identifiquei com a parte das andanças, também aprendi a ampliar os horizontes andando no meio do povo evangélico. Tive mais contatos com os grupos ecumênicos e evangelizais, sendo que minha raíz é dentro da tradição luterana fortemente influenciada pela teologia da libertação. Nesse meio aprendi a olhar o povo brasileiro com respeito e carinho, a apreciar o diálogo em roda, o compartilhar livre de ideias e a abertura para o aprendizado, evitando a dogmatização da fé.
O mais legal de olhar pra nossas biografias, ou pras biografias de outra pessoa, é percebermos o quanto nossa teologia ou sistema de pensamento é fruto da nossa vivência, da nossa biografia, e não temos como ser diferentes de quem fomos, somos e de quem nos tornaremos.
Abraço!
David Bueno
18 de maio de 2014Marcos como sempre traçando uma linearidade entre cultura e fé, e p mim o mais sadio para falar e discorrer sobre o assunto… benção mano, poético, simples e sadio.
Duda Martins
19 de maio de 2014É isso mesmo, Marcos! A cada dia me identifico mais contigo e menos com essa “bolha cristã” em que vivemos. Precisamos conversar cara a cara um dia.
Abraços,
Duda Martins
Kezia Garcia
19 de maio de 2014A cada dia que se passa me identifico mais com as palavras de Marcos Almeida.
Othon Júnior
19 de maio de 2014Marcos,
palavras de quem tem a inquietude sobre a existência. Inquietude transformada, angustiada ou lapidada pelas vivências da vida. Seria interessante se todos se deparassem com essa inquietude e fossem transformados por ela.
Rayane
19 de maio de 2014Excelente texto, temos que sair mesmo da bolha.
Acácio
19 de maio de 2014Muito obrigado por compartilhar com a gente!
Simone Lima
19 de maio de 2014Ótimas referências, ótimas reflexões, muita sensibilidade…É disso que o mundo precisa!!!!
Ivandro Menezes
20 de maio de 2014Com todo respeito e reverência de um nordestino, tiro pra ti meu chapéu e rendo-te meus olhos marejados e coração aquecido!
Camila Rodrigues
21 de maio de 2014Bravo!!! “… e a Verdade vos libertará.”
Gutemberg Portela
22 de maio de 2014Bravo!! através desse texto você descreve tudo que penso sobre isso,explica pra muitas pessoas que música popular brasileira também pode fazer parte das nossas vidas de igrejas sem que nos tornemos pessoas mal vistas apenas por apreciarmos esse tipo de música tão linda e tão nossa.
Jennifer Lucio
24 de maio de 2014“Encontrei na linguagem poética uma porta de acesso entre espiritualidade e beleza”
Marcos, saiba que quanto mais conheço o seu trabalho, mais me interesso e me surpreendo. Que Deus continue a lhe capacitar com maiores níveis de entendimento espiritual, inteligência sabedoria para que muitas vidas sejam cada vez mais edificadas.
Marcelo Santos
27 de maio de 2014Muito boa essa reflexão. Cresci sendo ensinado que cultura [no sentido de arte, música, literatura, etc.] e religião são [quase sempre] dissociáveis. Graças a Deus, enxerguei a verdade de que Deus está presente nas coisas e lugares que, para muitas pessoas, são inusitadas [Philip Yancey].
Joana
29 de maio de 2014Essa experiencia da “analogia da redenção” que o Marcos tem com cultura popular “quando costumes locais apontam verdades espirituais, ou quando verdades espirituais são aplicadas aos costumes locais” eu tenho com a ciência (em escala bem reduzida, eu sei) quando consigo ver princípios científicos apontando pra verdades espirituais e verdades espirituais aplicadas aos princípios físicos, mas especificamente.
Assim como o Marcelo Santos, também agradeço a Deus por poder enxergá-lo no inusitado, acho que as pessoas que se permitem fazer isso são mais sensíveis à voz/presença de Deus
Júlio Motta
29 de maio de 2014Parabéns! Sem palavras!!!
Polyana
29 de maio de 2014Meu querido você não sabe a alegria que me dar quando encontro alguém que pensa algo semelhante ao que penso, respiro aliviada ao saber que não sou doida nem insana, pelo menos não sozinha… Obrigada!
Beto
26 de junho de 2014Que esta genealogia possa ser reescrita daquu a 20 anos mais cheia de graça e liberdade.
Que o caminho lhe seja bom amigo, parabéns.
Abraço
Beto
Sarah F. Toledo
24 de julho de 2014Nossa, finalmente eu posso vir aqui com calma para comentar. E que bom é encontrar (auto)reflexões como essa. Isso, por si só, já é uma coisa importante. Às vezes parece que a gente nasce num lugar em que as coisas são dadas, a cultura é dada e não temos como fugir de determinado jeito de pensar, se comportar, entender o mundo. Honestidade consigo mesmo é tentar encontrar sua genealogia e, para isso, é preciso abrir os olhos para tantas possibilidades…
Bem, eu não sei até que ponto me aproximo do calvinismo (haha, acho que não muito), mas é curioso que trilhando caminhos (intelectuais, pessoais) diferentes, muitas vezes conseguimos chegar a conclusões parecidas. (Que linda é a possibilidade do debate!) Para mim, o cristianismo nos dá liberdade, da qual a gente abre mão quando tenta encaixar a experiência com o divino em lugares, estilos e até pessoas. É meio louco pensar nessa liberdade toda, já diria um poeta que não estamos muito acostumados com a liberdade. Mas é mais louco ainda pensarmos em uma liberdade diante de uma pluralidade, como é a cultura brasileira. Dá muito o que pensar. E fazer.
Um abraço!
Helena
29 de julho de 2014Que lindo isso, é maravilhoso saber que cada vez mais nossa religiosidade vai pro espaço, quando lemos e absorvermos essas palavras!
Isso é graça e cultura do Reino.
Deus te abençoe!
Ismael Higor
23 de outubro de 2014Grande texto, encontrei muito dos conflitos que me acompanharam na adolescência, tenho aprendido muito com Schaeffer, RookMaaker e principalmente com Steve Turner em seus livros Cristianismo Criativo? e Engolidos Pela Cultura Pop. Valeu Marcos
Ivaldo Costa
23 de outubro de 2014Há muito o que se descobrir ainda, a juventude tem dessas coisas, deslumbramentos, claudicancias, fascínios, certezas que logo ficam para trás diante de novas certezas absolutas.
A referência de hoje vai se diluindo com o tempo e novas referências aparecem como fôrmas perfeitas de nosso modo de pensar, no momento são irretocáveis como foi Breur para FREUD, Freud para Jung e que logo depois de um novo achado passam a ser referências para apenas algumas citações mais tímidas. Juventude um caminho…
Thiago Tomaz
29 de outubro de 2014Simplesmente muito claro,objetivo e real…Acredito e vejo da mesma forma
Deus não está preso em uma caixa de fósforos…Abraço pra ti Marcos e a todos acima.
Bruno
8 de novembro de 2014marcos,
gosto de te observar. Observar as andanças dos seus pensamentos. Nem sempre concordo com tudo, nem sempre entendo tudo… mas gosto de te observar mesmo assim. Gosto da sua proposta, da sua visão… E da forma como você consegue respeitar tudo. Alguns leem um livro e já se acham donos da verdade. É o que mais se vê no ~meio evangelico~, mas vc não é assim: vc consegue respeitar a tudo e a todos. Como Jesus, que conseguia até mesmo conversar com uma mulher.. de Samaria.
Que Deus te abençoe e te ajude a descobrir cada vez mais coisas belas enquanto você navega por esse rio.
Luciana
24 de novembro de 2014Putz!Super fã!
Texto sensato e inteligente!
Lorrane Amorim
24 de junho de 2015Parabéns pelo blog Marcos! Sempre que posso dou uma espiada nesse conteúdo rico! =)
Você poderia falar sobre a música ‘Anunciação’ de Alceu Valença? Já li sobre o significado democrático mais gostaria de ler seus pensamentos sobre ela!
Obrigada! =)
Bruno Mathias
26 de agosto de 2015Ótima reflexão, Marcos!