26 de Janeiro / A Lavoura de Luiz Fernando Carvalho
Vinte e seis
A primeira parte do diálogo entre filho e pai, dentro da Lavoura Arcaica de Luiz Fernando Carvalho. Muito forte!
“
– Para que as pessoas se entendam é preciso que ponham ordem nas suas ideias: palavra com palavra.
– Toda ordem traz uma semente de desordem, e a clareza uma semente de obscuridade. Não é por outro motivo que falo como falo. Eu poderia ser claro e dizer, por exemplo, que nunca, até o instante em que decidi o contrário, tinha pensado em deixar a casa. Eu poderia ser claro e dizer ainda que nunca, nem antes e nem depois de ter partido eu pensei que pudesse encontrar fora o que não me davam aqui dentro.
– E o que é que não te davam aqui dentro?
– Queria o meu lugar na mesa da família.
– Foi então por isso que você nos abandonou? Porque não te dávamos um lugar à mesa da família?
– Jamais os abandonei, pai. Tudo o que eu quis ao deixar a casa foi poupar-lhes o olho torpe à custa de minhas próprias vísceras.
– O pão, contudo, sempre esteve à mesa, e nunca ninguém te negou o direito de sentar-se com a família; ao contrário, era o desejo de todos que você nunca estivesse ausente na hora de repartir o pão.
– Não falo desse alimento. Participar só da divisão desse pão pode ser em certos casos simplesmente uma crueldade; seu consumo só prestaria para alongar minha fome.
– Do que você está falando?
– Não importa?
– Você blasfema!
– Não, pai, eu não blasfemo. Pela primeira vez na vida eu falo como um santo.
– Você está enfermo, meu filho. Uns poucos dias de trabalho ao lado dos teus irmãos hão de quebrar o orgulho da tua palavra, te devolvendo depressa a saúde de que você precisa.
– Não me interesso pela saúde de que o senhor fala. Existe nela uma semente de enfermidade, assim como na minha doença existe uma poderosa semente de saúde.
– Esqueça teus caprichos, meu filho. Não há proveito em atrapalhar nossas ideias. Não afaste teu pai da discussão dos teus problemas.
– Não acredito na discussão dos meus problemas. Não acredito mais em troca de pontos de vista. Estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra.
– Conversar é muito importante meu filho. Toda palavra, sim, é uma semente.
– Ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos tardios quando colhidos.
– É egoísmo próprio dos imaturos pensar só nos frutos quando se planta. A colheita não é melhor recompensa para quem semeia; já somos bastante gratificados pelo sentido das nossas vidas quando plantamos; já temos nossa recompensa só em fruir o tempo largo da gestação; já é um bem que transferimos se transferimos a espera para gerações futuras.
– Ninguém vive só de semear, pai.
– Claro que não, meu filho. Se outros hão de colher do que semeamos hoje, estamos colhendo por outro lado do que semearam antes de nós. É assim que o mundo caminha, é esta a corrente da vida.
– Isso já não me encanta, eu sei hoje do que é capaz essa corrente, dos que semeiam e não colhem, colhem do que não plantaram. Desse legado, pai, eu não tive o meu bocado. Por que empurrar o mundo pra frente? Se já tenho minhas mãos atadas, não vou, por iniciativa, atar meus pés também. Por isso, pouco me importa o rumo que os ventos tomem. Eu já não vejo diferença. Tanto faz que as coisas andem pra frente ou que elas andem pra trás.
– Não quero acreditar no pouco que te entendo, meu filho.
– Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do carcereiro. Da mesma forma, de quem amputamos os membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto. Maior despropósito que isso, só mesmo a vileza do aleijão, que na falta das mãos, recorre aos pés para aplaudir o seu algoz. Fica meais feio o feio que consente o belo…
– Continue…
– Mais pobre o pobre que aplaude o rico; menor o pequeno que aplaude o grande; mais baixo o baixo que aplaude o alto. E assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam. Acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros. A vítima ruidosa que aprova o seu opressor se faz duas vezes prisioneira.
– É muito estranho o que eu estou ouvindo.
– Estranho é o mundo, pai, que só se une se dessumindo. Erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente. Não há nada mais falso que o mérito, pai, e não fui eu que semeei essa semente.
– O que você quer dizer com tudo isso?
– Não quero dizer nada.
– Você está perturbado, meu filho.
– Não, pai, não estou perturbado.
– Então, de quem é que você estava falando?
– De ninguém em particular. Eu só estava pensando nos desenganados, sem remédio, nos que não são supérfluos nos seus gemidos; nos que gritam de sede, ardência e solidão. Era só neles que eu pensava.
– Quero te entender, meu filho, mas já não entendo nada.
– Eu sei que misturo as coisas quando falo; são as palavras que me empurram, mas estou lúcido, pai. E , se há farelo nisso tudo, tem também aí muito grão inteiro.
– Mas sonega clareza pro teu pai, filho.
– Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas. Estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade.
– É forte quem enfrenta a realidade. Depois, estamos em família, que só um insano tomaria por um ambiente hostil.
– Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a mesma pra todos. E, de minha parte, a única coisa que sei é que todo meio é hostil desde que negue direito a vida.
– Não há hostilidade nessa casa. Ninguém aqui te nega direito à vida. Não é sequer admissível que esse absurdo te passe pela cabeça.
– É um ponto de vista.
– Não é um ponto de vista! Eu e tua mãe vivemos sempre para vocês, o irmão para o irmão. Nunca faltou apoio da família a quem necessitasse.
– O senhor não me entendeu, pai.
– Como é que eu posso te entender, André? Existe obstinação na tua recusa, isso também entendo. Onde você encontraria lugar mais propício para discutir os assuntos que te afligem?
……”
(Lavoura Arcaica – Luiz Fernando Carvalho)
4 Comentários
Thayane Nolasco
26 de janeiro de 2012Que texto!! Encantada…
Ramon Neves
27 de janeiro de 2012Embaralhou meus neurônios… Mas sem dúvidas sao bons argumentos..
João Marcelo
27 de janeiro de 2012Tenho acompanhado dia-a-dia os textos do nossa brasilidade, mais esse tem falado muito ao meu coração. Que nossa brasilidade abra os olhos pra realidade da vida. Abração Marcão… Deus te abençoe!
Silas da Silva Santos
27 de janeiro de 2012Marcos,
Sugestão…
Por que você não cria uma seção de “Dicas de livros”. Algo que contenha os livros que você leu, está lendo ou gostaria de ler com comentários seus, sinopses, etc.
Abraços!
Silas