“Chorou, Chorou” e “Pelo amor de Deus” – João Donato & Milton Nascimento
É possível perceber o sagrado dentro das tensões do cotidiano? João Donato e Milton Nascimento, em duas canções, dizem sim.
Tenho perguntado aqui se existe alguma expressão de espiritualidade na música popular brasileira ou se essas expressões estão confinadas ao canto litúrgico das religiões. Então, aquela famosa lista que a revista Rolling Stone fez em 2007,a lista dos 100 maiores discos da música brasileira, foi o recorte escolhido para a pesquisa afim de começarmos pelo “cânone”.Esses discos, depois de serem sistematicamente ouvidos e catalogados pela pesquisadora, socióloga e mestranda em ciências sociais, Sarah Ferreira de Toledo – a pedido do Nossa Brasilidade – apresentaram-nos 100 canções que, de alguma forma, tocam o religioso a partir de um contexto “mundano”. Interessante ver que nesses três dias de publicações, nossos queridos leitores já se engajaram na aventura e têm enviado outros exemplos de canções que utilizam palavras, símbolos e expressões da espiritualidade nas suas letras. Agradecido, gente! Certamente vocês juntos (são cerca de 1500 leitores em média por dia) têm muito mais exemplos do que eu e a Sarah sozinhos.
Hoje vou apresentar para vocês duas canções de uma vez. Simplesmente porque na sua narrativa se dirigem a “Deus” sem aquela formalidade da oração – acho que elas se parecem nesse sentido. Quem me apresenta essa possibilidade de interpretação é a própria música, o som mesmo. “Chorou, Chorou” de João Donato e Paulo César Pinheiro (1973), é a primeira. Depois vem Milton Nascimento com “Pelo amor de Deus” (1972). Vocês vão ver que Ele aparece nos dois envolvido pelo hábito da linguagem cotidiana, como um tipo de jargão, são expressões idiomáticas longínquas e, poderia dizer, universais. Igual quando a gente diz “fica com Deus” ou “graças a Deus”, as expressões “eu pergunto a Deus” e “pelo amor de Deus” aparecem meio que inconscientemente no discurso. Sim, a letra se abre para outras tantas interpretações… e em sendo rearranjadas podem adquirir a introspecção de uma confissão reservada ou uma suplica zombeteira. Orelha na caixa! Ouçam João Donato e Milton Nascimento revelando o hábito do sagrado dentro das tensões do cotidiano.
Chorou, Chorou
De: João Donato e Paulo César Pinheiro
Intérprete: João Donato
Disco: Quem é Quem
Gravadora: EMI/Odeon
Ano: 1973
Passo a passo, andando eu vim
Alguém disse: Alô alô
Como vai?
Assim, assim
E nasceu o amor, amor
Mas no dia-a-dia
Eu vi você,
Você mudou
Logo, logo eu percebi
E morreu o amor, amor
Quem partiu, partiu chorando
Mas o que passou passou
Quem, quem ficou,
Ficou lembrando
Quem chorou, chorou chorou
Eu pergunto a Deus, a Deus
Ora, ora, o que é que eu sou
Diz-me o que será, será
Sem o meu amor, amor
Pelo Amor de Deus
De: Milton Nascimento
Intérprete: Milton Nascimento
Disco: Clube da Esquina
Gravadora: EMI-Odeon
Ano: 1972
Fotos de uma velha festa
ossos tão antigos, fatos tão passados
no meio das fotos vai roendo um rato
corre um rato, pega, pelo amor de Deus
Ontem li num almanaque
aventuras de pastores e cordeiros
quando eu terminava, uma voz de rua
disse coisas certas, pelo amor de Deus
Recusando a sobremesa
um prato de ouro e um copo de vinho
como o velho Chaplin eu jogo na cara
tanta coisa pobre, pelo amor de Deus
Beira-mar de uma janela
panoramisando nua companheira
corpo contra corpo, pele contra pele
e seu corpo é belo, pelo amor de Deus.
1 Comentário
Laisa
23 de outubro de 2013Gente teria como vocês disponibilizarem as músicas dos posts pra baixar? Porque está bem difícil de encontra-las viu, kkk
Um abraço, fiquem na paz.