03 de Fevereiro / José Albano
Trinta e quatro
Reverenciado por Tristão de Athayde como alguém que “criou uma poesia intemporal, em que o verdadeiro clássico se perpetua em sua perenidade”. Um homem que os historiadores não conseguem catalogar, José Albano declama agora no Nossa Brasilidade o seu Soneto IX. Vamos ouvir:
Bom Jesus, amador das almas puras,
Bom Jesus, amador das almas mansas,
De ti vêm as serenas esperanças,
De ti vêm as angélicas doçuras.
Em toda parte vejo que procuras
O pecador ingrato e não descansas,
Para lhe dar as bem-aventuranças
Que os espíritos gozam nas alturas.
A mim, pois, que de mágoa desatino
E, noute e dia, em lágrimas me banho,
Vem abrandar o meu cruel destino.
E, terminado este degredo estranho,
Tem compaixão de mim, Pastor divino,
Que não falte uma ovelha ao teu rebanho!
(Soneto IX – José Albano )
02 de Fevereiro / Tasso da Silveira
Trinta e três
A chamada ala espiritualista do modernismo é composta de nomes como Cecília Meirelles, Murilo Mendes, Tristão de Ataíde, entre outros que valorizavam a religiosidade dos poetas. Mas nessa hora, vamos receber no nosso sítio Tasso da Silveira – nome muito respeitado dentro dessa ala.
Ele acabou entrando nos noticiários do último ano de forma indireta, por causa da catástrofe de realengo. A escola municipal que recebeu aquele psicopata, para inimaginável crueldade, é batizada com seu nome; Tasso da Silveira.
Diante das catástrofes qualquer poesia se torna palavra oca. O excesso de realidade absurda, o terror descabido, toda essa loucura, extrapola as tentativas de representação. Fazer poesia depois daquele dia é ainda mais absurdo!
Sim. Porque fica claro a diferença da religiosidade do louco-terrorista e do poeta-espiritualista: para o louco a religião é morte, é guerra, para o poeta é a vida transbordando pois se encontrou com a Esperança! Essa que não nos entorpece para a realidade, mas, pelo contrário, faz em nós lucidez e ajusta em nós o rumo.
Vamos ouvir o poeta em dois trechos preciosos:
Da minha vida ao fim da caminhada
vejo-me agora numa selva escura,
não como a do Alighieri dominada
pelas três feras da hórrida aventura:
uma selva que, embora de amargura,
é por sinais de Deus iluminada:
há brancos trêmulos na altura,
leva-me pela mão a muito amada.
A infinita esperança deste instante
(Senhor, Senhor! Bem sei que nunca pude
fazer da clara estrada a via eterna),
é que para o meu passo vacilante,
esta selva de aspecto triste e rude
seja o caminho da Mansão Paterna.
(Soneto 6, Regresso à origem– Tasso da Silveira)
*
Nós temos uma visão clara desta hora.
Sabemos que é de tumulto e de incerteza.
E de confusão de valores.
E de vitória do arrivismo.
E de graves ameaças para o homem.
Mas sabemos, também, que não é esta a primeira
hora de agonia e inquietude que a humanidade vive.
(…)
A arte é sempre a primeira que fala para anunciar
o que virá.
E a arte deste momento é um canto de alegria,
uma reiniciação na esperança,
uma promessa de esplendor.
Passou o profundo desconsolo romântico.
Passou o estéril ceticismo parnasiano.
Passou a angústia das incertezas simbolistas.
O artista canta agora a realidade total:
a do corpo e a do espírito,
a da natureza e a do sonho,
a do homem e a de Deus,
canta-a, porém, porque a percebe e compreende
em toda a sua múltipla beleza,
em sua profundidade e infinitude.
E por isto o seu canto
é feito de inteligência e de instinto
(porque também deve ser total)
e é feito de ritmos livres
elásticos e ágeis como músculos de atletas
velozes e altos como sutilíssimos pensamentos
e sobretudo palpitantes
do triunfo interior
que nasce das adivinhações maravilhosas…
O artista voltou a ter os olhos adolescentes
e encantou-se novamente com a Vida:
todos os homens o acompanharão!
(Intróito- Definição do Modernismo Brasileiro, 1932 -Tasso da Silveira)
01 de Fevereiro / Mais perto do Infinito
Trinta e dois
Meu capital intelectual está muito bem investido em amigos como Guilherme de Carvalho, Rodolfo Amorim, Simonton Araújo e Raquel Araújo – para citar os mais próximos. É que sempre que deposito uma fração irrisória de alguma ideia em suas ações, eles me devolvem quantias substanciais de saberes valiosos!
Este texto é inspirado numa referência que Raquel me trouxe ontem a noite. Enquanto lia certa coletânea de artigos, ela percebeu num texto de Márcio Seligmann-Silva algo relacionado ao Nossa Brasilidade. Como é generosa, não demorou a twittar a frase, e como é minha vizinha (e cunhada) resolveu visitar a irmã mais linda que tem e não veio de mãos vazias; trouxe o livro para eu folhear. Claro, fiz mais que isso, tirei uma cópia e li o artigo todo – uma maravilha.
Entre outros insights, esse artigo expos a já conhecida fragilidade da linguagem objetiva quando ela tenta traduzir o mundo dos fatos. A realidade, a experiência e principalmente o exagero de certos objetos transbordam este copo raso da representação. É maior que ele. Daí nasce a necessidade do simbólico e da metáfora.
Para reforçar essa constatação, o escritor cita, nesse momento, Schlegel:
“A necessidade da poesia nasce da impossibilidade da filosofia em expor o infinito”
Já estamos no primeiro dia de Fevereiro e há 31 dias assistimos essa vontade de tocar o Infinito sendo estampada nos recortes da nossa literatura. Para não perder o costume, e certo de que a aventura só está começando, aqui vai mais um:
CENA 32
BASTIDORES DO PALQUINHO / INTERIOR / TARDE
Ainda no mesmo povoado, Quirino representa sobre o palquinho um de seus costumeiros números de plateia. Parte de sua cena é vista dos bastidores, onde Maria e Rosa se despedem.
ROSA
Espera o espetáculo acabá…
MARIA
Meior, não.
ROSA e MARIA olham-se e se abraçam. ROSA começa a chorar.
MARIA
Chora, não Rosa!
E também desaba no choro.
ROSA
Choro , sim, Maria, purque é duro chega no fim das coisa.
MARIA
Depois do fim tem sempre mais caminhá! E amizade é riqueza que num se perde.
As duas se abraçam com força.
ROSA
Que o bom caminho se abra pr’ocê pelo mundo!
MARIA
Pra ocê tomém. E que a gente mereça trilhá até o fim do que nunca termina.
Maria enxuga as lágrimas e sorri para Rosa. Pega um embornal com uns poucos pertences e se afasta. Rosa enxuga as lágrimas.
(Hoje é dia de Maria – Da obra de Carlos Alberto Soffredini / escrito por Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho)
31 de Janeiro / Ariano Suassuna
Trinta e um
O brilhante Ariano Suassuna já está falando. Vamos ouvir:
MULHER
Ai, padre, pelo amor de Deus, meu cachorro está morrendo. É o filho que eu conheço neste mundo, padre. Não deixe o cachorrinho morrer, padre!
PADRE
comovido
Pobre mulher! Pobre cachorro!
João Grilo estende-lhe um lenço e ele se assoa ruidosamente.
PADEIRO
O senhor benze o cachorro, Padre João?
JOÃO GRILO
Não pode ser, O bispo está aí e o padre só benzia se fosse o cachorro do major Antônio Morais, gente mais importante, porque senão o homem pode reclamar.
PADEIRO
Que história é essa? Então Vossa Senhoria pode benzer o cachorro do major Antônio Morais e o meu não?
PADRE
apaziguador
Que é isso, que é isso?
PADEIRO
Eu é que pergunto: que é isso? Afinal de contas eu sou presidente da Irmandade das Almas, e isso é alguma coisa.
JOÃO GRILO
É, padre, o homem aí é coisa muita. Presidente da Irmandade das Almas! Para mim isso, é um caso claro de cachorro bento. Benza logo o cachorro e tudo fica em paz.
PADRE
Não benzo, não benzo e acabou-se! Não estou pronto para fazer essas coisas assim de repente. Sem pensar, não.
MULHER
furiosa
Quer dizer, quando era o cachorro do major, já estava tudo pensado, para benzer o meu é essa complicação! Olhe que meu marido é presidente e sócio benfeitor da Irmandade Almas! Vou pedir a demissão dele!
PADEIRO
Vai pedir minha demissão!
MULHER
De hoje em diante não me sai lá de casa nem um pão para a Irmandade!
PADEIRO
Nem um pão!
MULHER
E olhe que os pães que vêm para aqui são de graça!
PADEIRO
São de graça!
MULHER
E olhe que as obras da igreja é ele quem está custeando!
PADEIRO
Sou eu que estou custeando!
PADRE
apaziguador
Que é isso, que é isso!
MULHER
O que é isso? É a voz da verdade, padre João. O senhor agora vai ver quem é a mulher do padeiro!
JOÃO GRILO
Ai, ai, ai e a Senhora, o que é que é do padeiro?
MULHER
A vaca…
CHICÓ
A vaca?!
MULHER
A vaca que eu mandei para cá, para fornecer leite ao vigário tem que ser devolvida hoje mesmo.
PADEIRO
Hoje mesmo!
PADRE
Mas até a vaca? Sacristão, sacristão!
JOÃO GRILO
A vaca também é demais. (Arremedando o padre.) Sacristão, sacristão!
O Sacristão aparece à porta. É um sujeito magro, pedante, pernóstico, de óculos azuis que ele ajeita com as duas mãos de vez em quando, com todo cuidado. Pára no limiar da cena, vindo da igreja, e examina todo o pátio.
JOÃO GRILO
Sacristão, a vaca da mulher do padeiro tem que sair!
SACRISTÃO
Um momento. Um momento. Em primeiro lugar, o cuidado da casa de Deus e de seus arredores. Que é isso? Que é isso?
Ele domina toda a cena, inclusive o Padre que tem uma confiança enorme na empáfia) segurança e hipocrisia do secretário.
MULHER E PADEIRO
ao mesmo tempo, em resposta à pergunta do Sacristão
É o padre…
SACRISTÃO
afastando os dois com a mão e olhando para a direita
Que é aquilo? Que é aquilo?
Sua afetação de espanto é tão grande, que todos se voltam para direção em que ele olha.
SACRISTÃO
Mas um cachorro morto no pátio da casa de Deus?
PADEIRO
Morto?
MULHER
mais alto
Morto?
SACRISTÃO
Morto, sim. Vou reclamar à Prefeitura.
PADEIRO
correndo e voltando-se do limiar
verdade, morreu!
MULHER
Ai, meu Deus, meu cachorrinho morreu.
Correm todos para a direita, menos João Grilo e Chicó. Este vai para a esquerda, olha a cena que se desenrola lá fora, e fala com grande gravidade na voz.
CHICÓ
É verdade, o cachorro morreu. Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre.
JOÃO GRILO
suspirando
Tudo o que é vivo morre. Está aí uma coisa que eu não sabia! Bonito, Chicó, onde foi que você ouviu isso? De sua cabeça é que não saiu, que eu sei.
CHICÓ
Saiu mesmo não, João. Isso eu ouvi um padre dizer uma vez. Foi no dia em que meu pirarucu morreu.
JOÃO GRILO
Seu pirarucu?
CHICÓ
Meu, é um modo de dizer, porque, para falar a verdade, acho que eu é que era dele.Nunca lhe contei isso não?
JOÃO GRILO
Não, já ouvi falar de homem que tem peixe, mas de peixe que tem homem, é a primeira vez.
CHICÓ
Foi quando eu estive no Amazonas. Eu tinha amarrado a corda do arpão em redor do corpo, de modo que estava com os braços sem movimento. Quando ferrei o bicho, ele deu um puxavante maior e eu caí no rio.
JOÃO GRILO
CHICÓ
Exatamente, João, o bicho me pescou. Para encurtar a história, o pirarucu me arrastou rio acima três dias e três noites.
JOÃO GRILO
Três dias e três noites? E você não sentia fome não, Chicó?
CHICÓ
Fome não, mas era uma vontade de fumar danada. E o engraçado foi que ele deixou para morrer bem na entrada de uma vila, de modo que eu pudesse escapar. O enterro foi no outro dia e nunca mais esqueci o que o padre disse, na beira da cova.
JOÃO GRILO
E como o avistaram da vila?
CHICÓ
Ah, eu levantei um braço e acenei, acenei, até que uma lavadeira me avistou e vieram me soltar.
JOÃO GRILO
E você não estava com os braços amarrados, Chicó?
CHICÓ
João, na hora do aperto, dá-se um jeito a tudo.
JOÃO GRILO
Mas que jeito você deu?
CHICÓ
Não sei, só sei que foi assim.
(O Auto da Compadecida – Ariano Suassuna)
30 de Janeiro / João Ubaldo Ribeiro
Trinta
Sou fã. Ponto. E quem não é? João Ubaldo Ribeiro, o pai do VJ da MTV Bento Ribeiro, é um gênio do nosso vernáculo. Ganhador dos mais importantes prêmios literários da nossa língua (Jabuti e Camões, por exemplo), sucesso de vendas e grande contador de histórias, ele chega aqui pra compartilhar parte do seu mais destacado livro: “Viva o povo brasileiro”. Chega mais perto e vamos ouvir:
“ Num lugar que ninguém sabe, pela praia ou pelo mato, pela ilha ou pela terra, era uma vez um vigário. Era uma vez a freguesia desse vigário, era uma vez sua igreja, era uma vez o povo que nesse sítio morava, onde havia muitas beatas e muita gente misseira e benigna. O vigário, antes da missa, não podia descansar, porque vinham as beatas se confessar. Depois da missa, não podia descansar, porque vinham as beatas se confessar, e então o padre não fazia outra coisa que cuidar das desobrigas daquele povo carolo. Aí o padre pensou, pensou, pensou e chegou num resultado, que foi fazer por escrito um ror de coisas, ror esse que preparou para ler na missa. Quando chegou a missa, o padre pegou do ror e leu da seguinte maneira: minhas prezadas devotas, povo desta freguesia, já estou ficando velho e cansado e não tenho mais tempo e sustança para tanta confissão todo dia. Por isso que doravante vamos obedecer à seguinte disposição, que eu mesmo pensei muito bem pensado e escrevi muito bem escrito, estando tudo muito bem ajuizado: no domingo, eu confesso as preguiçosas e as que não têm asseio; na segunda, as que furtam e as que mentem; na terça, as que bebem; na quarta, as que enganam o marido ou pecam ao contubérnio; na quinta, as crocas e as maldizentes; na sexta, as feiticeiras, as mandingueiras e as treiteiras; no sábado, as comilonas e as invejosas. Que quando o vigário terminou de dizer isso, ninguém disse nada na hora, mas toda a gente se olhou assim, e daquele dia em diante não teve mais beata que quisesse confissão naquela freguesia e o vigário descansou à larga com seu bom vinho de missa, pé de pato mangalô três vez.”
(Viva o Povo Brasileiro, pág.94 e 95, João Ubaldo Ribeiro – 2009)