04 de Janeiro / Cecília Meireles
Quatro
Palavras de Carlos Nejar: “[Ela] esqueceu as fronteiras da Modernidade, para o Eterno, o Intemporal…sua poesia é de transcendência… Raríssimos poetas da língua comum chegaram à [sua] altura órfica. Ou a tamanha serenidade. Por ter ela logrado: ‘Dizer com claridade o que existe em segredo’. E murmurar, como em segredo, o que existe de claridade.” Com vocês Cecília Meireles:
Aqui sobre a noite,
na cinza das pálpebras,
no meio das rosas,
no sono das aves,
nas franjas da lua,
nas imóveis águas,
aqui, sobre a tênue
seda da saudade,
a perpétua face.
Sozinha contemplo
o ardente milagre.
Ninguém mais te avista,
Verônica suave!
-Desenho do sonho
que a noite reparte.
Por que me apareces
igual à verdade,
ilusória imagem?
Na minha alegria,
corre um mar de lágrimas.
Tudo se repete,
na terra e nos ares,
e os meus pensamentos
são só teu retrato.
Em puro silêncio,
luminosa jazes:
tão doce e tão grave!
Fita bem meu rosto,
guarda os olhos pálidos
com rios antigos
por onde viajaste.
Lembra-te da minha
sombra humana, diáfana,
-pode ser que um dia
todos nós passemos
pela Eternidade.
(in Obra Poética 1958 Cecília Meireles)
Guia de Leitura Poética
Dez dias de férias no Rio de Janeiro me trouxeram boas ideias e excelentes leituras. Poesia; quis só ela e nada mais! Abrir as páginas de Adélia Prado, reler Mário Quintana, Cecília Meireles, Manoel Bandeira, Drummond, Antonio Cícero… Sim, comprei muitos livros com palavras loucas, imagens únicas – escuridão e clareza numa mistura misteriosa – , confissões escancaradas, sons improváveis e algo que sempre me atraiu para a poesia; sua proximidade com a espiritualidade, aquela vontade de se religar com o Eterno. Daí pensei: por que não ir conhecendo mais desse universo de palavras mágicas? Por que não retomar aquelas antigas leituras que me acompanham desde a adolescência? Por que não ler todo dia uma poesia? Que tal fazer um “Guia de Leitura Poética 2012” ? Um motivo estampado na minha testa: para que a gente se aproxime do poeta, cujo olhar observa o mundo a partir de outras janelas, as janelas da alma, abertas por outras razões que nenhuma outra literatura sabe explicar porque – nem mesmo a dona teologia, parente bem próximo da linguagem poética, pode tocar onde a poesia toca. Aliás, quando isso acontece, quase sempre o teólogo vira um esteta onde a salvação se torna a beleza e a beleza vira sua religião.
Pois bem, resolvi sugerir uma leitura por dia. Uma dieta para a nossa criatividade. Todo dia vou postar aqui no Nossa Brasilidade um poeta do nosso povo. Como já estamos no dia 03 (ãh? acredite) deixarei logo três brilhantes poemas para ficarmos em dia com este delicioso regime de boas surpresas. Alimentação balanceada para a nossa imaginação!
Você pode ir recortando e colando no seu caderno de poesia e no final do ano teremos 366 obras de profunda humanidade e honestidade, típicas do lirismo dos verdadeiros poetas.
Então, abram as janelas, respirem fundo, tomem seus sustos e deleitem-se a vontade!
JANEIRO
Um
Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
– para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.
(Emergência / Mario Quintana)
Dois
Me escondo no porão
Para melhor aproveitar o dia
E seu plantel de cigarras.
Entrei aqui para rezar,
Agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado,
Tenho sono e posso dormir,
Tendo comido e bebido sem pagar.
O dia lá fora é quente,
a água na bilha é fresca,
acredito que sugestiono elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo,
O de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
Em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram,
Alguém vai me chamar.
Responderei amorosa,
refeita de sono bom.
Fora que alguém me ama,
eu nada sei de mim.
(Tão bom aqui / Adélia Prado)
Três
Em sua essência, a poesia é algo horrível:
nasce de nós uma coisa que não sabíamos
[que está dentro de nós,
e piscamos os olhos como se atrás de nós
[tivesse saltado um tigre,
e tivesse parado na luz, batendo a cauda
[sobre os quadris.
(Czeslaw Milosz, tradução: Aleksandar Jovanovic)