11 de Janeiro / Antonio Cicero
Onze
Guardar
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fita-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guarda-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
(Antonio Cicero)
Idealizador do “Banco Nacional de Idéias”, Antonio Cicero é poeta e pensador. Palestrante em vários encontros filosóficos pelo mundo a fora, continua trabalhando a palavra entre o lirismo e a razão, testemunhando que poesia e filosofia moram debaixo do mesmo teto. Sua poética também virou verso de várias canções – mais de 100.
09 de Janeiro/ Carlos Saldanha
Nove
SHEN HSIU
Havia um monje
Que lustrava a careca
Para que sua cabeça
Fosse como se um espelho:
Refletisse tudo
E não guardasse nada.
( Carlos Saldanha)
Não. Este aqui não é o produtor do filme a Era do Gelo. O Saldanha dessa brilhante tira poética faz parte da já mencionada Geração Marginal (aqui representada pelo Francisco Alvim – 08 – e Chacal – 05). Apareceu com esses dois senhores na famosa antologia “26 Poetas Hoje” organizada por Heloisa Buarque de Hollanda em 1975 no Rio de Janeiro. (Há muito tempo atrás não é?)
08 de Janeiro / Francisco Alvim
Oito
Em cima da cômoda
uma lata, dois jarros, alguns objetos
entre eles três antigas estampas
Na mesa duas toalhas dobradas
uma verde, outra azul
um lençol também dobrado livros chaveiro
Sob o braço esquerdo
um caderno de capa preta
Em frente uma cama
cuja cabeceira, abriu-se numa grande fenda
Na parede alguns quadros
Um relógio, um copo.
( Luz – Francisco Alvim)
O cotidiano deste diplomata aparece aqui não como resultado duma alma sem grandes esperanças; o que o levaria, segundo alguns, a se concentrar em cadernos, camas e cabeceiras. Ele pertence a uma geração de poetas que viu brilhar esse feixe de luz sobre as coisas simples da vida. A leitura que faço passa por esse re-encontro com a experiência pessoal do dia a dia; uma oportunidade de tocar aquilo que está a nossa volta.
06 de Janeiro / Guimarães Rosa
Seis
O Sertão de Guimarães Rosa é cheio de variações, de personagens que saltam do texto quase que palpáveis por serem todos soprados pelo próprio povo das Gerais. Povo de poesias… Aqui vai um pequeno trecho onde Riobaldo fala da alma e de ‘muita religião, seu moço!’. Um recorte precioso que exemplifica o sincretismo da nossa gente.
Como bem lembrou Gedeon Alencar, misturado somos todos. O protestantismo brasileiro [ representado a seguir pelo Matias-crente-metodista] também é miscigenado sim senhor; mas beber catolicismo, Cardéque e a religião de John Wesley no mesmo copo é de um paladar e duma sede que só poderia aparecer em Riobaldo – figura legítima de uma brasilidade que ainda está aí. Sem mais, com vocês, a lavra de Guimarães Rosa:
“ Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável.”
05 de Janeiro / Chacal
Cinco
Vivo e ativo. Poeta. Marginal – por que o centro velho estava sério demais? Talvez sim. E ele consegue tirar o riso com uma graça incomum. Sua palavra fluente nos aproxima do dia a dia, um cotidiano diverso e cheio de humor. Ele se chama Ricardo, mas, para a literatura e a música: Chacal.
Veio uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui êles disserum qui chamava açucri
Aí êles falaram e nós fechamu a cara
depois êles arrepitirum e nós fechamu o corpo
Aí êles insistiram e nós comemu êles.
•••
uma
palavra
escrita é uma
palavra não dita é uma
palavra maldita é uma palavra
gravada como gravata que é uma palavra
gaiata como goiaba que é uma palavra gostosa
(Papo de índio – Chacal)