06 de Fevereiro / Caetano Veloso e sua “Língua”
Trinta e sete
Resta-nos a invenção e uma nova sintaxe! O jeito brasileiro de falar português já nos foi dado, e agora o que faremos nós com esse tamanho de dádiva? A língua africana embrenhada com a fala indígena e a gramática lusitana se misturando, entrelaçadas elas mesmas no encontro dos portos, na visita do estrangeiro. Esse é o tabuleiro. Essa é fôrma onde fizeram a cocada: essa língua deliciosa e totalmente brasileira. Resta-nos a invenção e uma nova sintaxe!
Enquanto vocês pensam nisso. Vamos ler, assistir e ouvir o professor Caetano Veloso nesta estonteante versão de “Língua” – uma obra prima do seu disco Vêlo de 1984.
Língua
Caetano Veloso
Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(– Será que ele está no Pão de Açúcar?
– Tá craude brô
– Você e tu
– Lhe amo
– Qué queu te faço, nego?
– Bote ligeiro!
– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
– I like to spend some time in Mozambique
– Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem
05 de Fevereiro / Roberto Diamanso
Trinta e seis
Do álbum “Plantas e Habite-se” vem esta belíssima canção que vamos ouvir a seguir. Hoje o Nossa Brasilidade recebe a poesia, a sensibilidade e a economia lírica de Roberto Diamanso, cujos versos se apresentam sem desperdiçar palavras, sem deixar de nos surpreender com os sons dessa riqueza nordestina.
O fraseado modal é fluido e vai se sustentando em harmonia mansa, como um riachinho raso, límpido e largo no meio dessa barulheira semiárida que é a canção industrializada. Vamos respirar e apreciar essa paisagem que Diamanso criou. Aproveitem.
Nossos novos atos
(Letra e Música : Roberto Diamanso)
Que bons ventos o trazem amigo,
Que bom te ver por aqui.
Sim. São os bons ventos
O sopro pneuma, o ar.
Olá, com o ar de quem traz
Boas novas chegando por aqui.
Avia vai lá chamar os irmão,
Vamos armar nossa tenda
Na grama do jardim trazer
Nossas riquezas a uma mesma mesa.
E repartir, medir boa medida,
Recalcada, sacudida.
Dá, dá e dar-se-vos-á
Com a mesma medida que medirdes, medi.
(Vozes: Roberto Diamanso,Odilio,Jonathan,Márcia)
Para ouvir clique aqui: 02 Nossos Novos Atos
04 de Fevereiro / Sábado Sarau
Trinta e cinco
No Sábado Sarau de hoje temos a expressão sincera de dois leitores assíduos do Blog. O querido Igor Chacon com sua prece poética e a carioca Juliana Rodrigues compartilhando um desenho de três anos atrás, quando ainda era uma criança. Duas belezas! Aproveitem:
Oh, Deus das multidões
que ouve preces e orações
na casa dos colonos
ver lhes vir os anos
rasgando suas faces, esperando que Tu laces
dos corações as batidas
dos sertões idas e vindas
traz paz eterna e feliz
do Teu céu, salpicado de branco giz
(Igor Chacon)
(Juliana Rodrigues)
Continuem enviando suas leituras, as poesias próprias, dentro ou fora da métrica, de hoje e da infância. Enviem também um pequeno perfil pra gente se conhecer melhor (nome, cidade, idade, twitter, etc).Envie seu quadros, desenhos, músicas. Afinal, essa Brasilidade é Nossa e aqui é apenas um cantinho pra gente se encontrar.
Carta
Av. Fortaleza 1500 Ap 203
CEP 29101 575
Bairro Itapoã Vila Velha – ES
A/C Marcos Almeida
03 de Fevereiro / José Albano
Trinta e quatro
Reverenciado por Tristão de Athayde como alguém que “criou uma poesia intemporal, em que o verdadeiro clássico se perpetua em sua perenidade”. Um homem que os historiadores não conseguem catalogar, José Albano declama agora no Nossa Brasilidade o seu Soneto IX. Vamos ouvir:
Bom Jesus, amador das almas puras,
Bom Jesus, amador das almas mansas,
De ti vêm as serenas esperanças,
De ti vêm as angélicas doçuras.
Em toda parte vejo que procuras
O pecador ingrato e não descansas,
Para lhe dar as bem-aventuranças
Que os espíritos gozam nas alturas.
A mim, pois, que de mágoa desatino
E, noute e dia, em lágrimas me banho,
Vem abrandar o meu cruel destino.
E, terminado este degredo estranho,
Tem compaixão de mim, Pastor divino,
Que não falte uma ovelha ao teu rebanho!
(Soneto IX – José Albano )
02 de Fevereiro / Tasso da Silveira
Trinta e três
A chamada ala espiritualista do modernismo é composta de nomes como Cecília Meirelles, Murilo Mendes, Tristão de Ataíde, entre outros que valorizavam a religiosidade dos poetas. Mas nessa hora, vamos receber no nosso sítio Tasso da Silveira – nome muito respeitado dentro dessa ala.
Ele acabou entrando nos noticiários do último ano de forma indireta, por causa da catástrofe de realengo. A escola municipal que recebeu aquele psicopata, para inimaginável crueldade, é batizada com seu nome; Tasso da Silveira.
Diante das catástrofes qualquer poesia se torna palavra oca. O excesso de realidade absurda, o terror descabido, toda essa loucura, extrapola as tentativas de representação. Fazer poesia depois daquele dia é ainda mais absurdo!
Sim. Porque fica claro a diferença da religiosidade do louco-terrorista e do poeta-espiritualista: para o louco a religião é morte, é guerra, para o poeta é a vida transbordando pois se encontrou com a Esperança! Essa que não nos entorpece para a realidade, mas, pelo contrário, faz em nós lucidez e ajusta em nós o rumo.
Vamos ouvir o poeta em dois trechos preciosos:
Da minha vida ao fim da caminhada
vejo-me agora numa selva escura,
não como a do Alighieri dominada
pelas três feras da hórrida aventura:
uma selva que, embora de amargura,
é por sinais de Deus iluminada:
há brancos trêmulos na altura,
leva-me pela mão a muito amada.
A infinita esperança deste instante
(Senhor, Senhor! Bem sei que nunca pude
fazer da clara estrada a via eterna),
é que para o meu passo vacilante,
esta selva de aspecto triste e rude
seja o caminho da Mansão Paterna.
(Soneto 6, Regresso à origem– Tasso da Silveira)
*
Nós temos uma visão clara desta hora.
Sabemos que é de tumulto e de incerteza.
E de confusão de valores.
E de vitória do arrivismo.
E de graves ameaças para o homem.
Mas sabemos, também, que não é esta a primeira
hora de agonia e inquietude que a humanidade vive.
(…)
A arte é sempre a primeira que fala para anunciar
o que virá.
E a arte deste momento é um canto de alegria,
uma reiniciação na esperança,
uma promessa de esplendor.
Passou o profundo desconsolo romântico.
Passou o estéril ceticismo parnasiano.
Passou a angústia das incertezas simbolistas.
O artista canta agora a realidade total:
a do corpo e a do espírito,
a da natureza e a do sonho,
a do homem e a de Deus,
canta-a, porém, porque a percebe e compreende
em toda a sua múltipla beleza,
em sua profundidade e infinitude.
E por isto o seu canto
é feito de inteligência e de instinto
(porque também deve ser total)
e é feito de ritmos livres
elásticos e ágeis como músculos de atletas
velozes e altos como sutilíssimos pensamentos
e sobretudo palpitantes
do triunfo interior
que nasce das adivinhações maravilhosas…
O artista voltou a ter os olhos adolescentes
e encantou-se novamente com a Vida:
todos os homens o acompanharão!
(Intróito- Definição do Modernismo Brasileiro, 1932 -Tasso da Silveira)