Adélia Prado / Aula Magna: o poder humanizador da poesia.
Olá! Você pode assistir, como também ler a transcrição da conversa que Adélia Prado teve com Afonso Borges. Coisa linda! Aproveite.
Mineira de Divinóplis, Adélia Prado retrata o cotidiano com perplexidade e encanto. Nas palavras de Carlos Drummond de Andrade, Adélia é lírica, bíblica, existencial. Faz poesia como o bom tempo. Esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis. Professora por formação, Adélia Prado exerceu o Magistério durante 24 anos até que sua carreira de escritora tornou-se sua atividade central. Hoje ela vai falar sobre um tema sugerido por ela: “O poder Humanizador da Poesia”
Adélia:
Quando eu falo de poesia, não é apenas da poesia que, eventualmente, nem sempre nós encontramos nos poemas. Falo do fenômeno poético de natureza epifânica, reveladora, do que confere uma obra de arte o estatuto de obra de arte pode ser musica, pode ser escultura, pintura, teatro, dança, cinema e literatura que é onde eu me coloco. Tudo isso que foi nomeado, tudo aquilo que eu chamo de arte se justifica pela poesia que ela contém. Se não tiver poesia não é cinema, não é teatro, não é pintura, não é literatura. Não tendo, ela é tudo menos obra de arte. A obra verdadeira é sempre nova. Não cansa o que traz de si mesma e apesar de si mesma, algo que não lhe pertence e nem pertence ao seu autor. Vem de um outro lugar, de uma instancia mais alta e através da única via possivel que é a via da beleza. Em arte quando eu falo “beleza” não estou falando de boniteza, mas de forma, a arte é forma, não é do bonito que nós estamos falando. A forma, a beleza, revela o ser das coisas. É muito estranho falar do ser das coisas, esse ser ele é inapriensível, eu não dou conta de pegar o “ser” de uma rosa, de um rio, de uma paisagem ou de um rosto, mas quando a arte ela faz isso, ela apreende a coisa mais alta que está atrás das coisas, ela nos revela, nos remete à beleza suprema se nós estivermos despidos do orgulho, da razão e da lógica. Então para que esse fenômeno de revelação da arte possa acontecer temos que estar desnudos de todo o orgulho, a razão tem que abrir mão desse poder, a lógica tem que abrir mão desse poder para que a obra seja apreendida no único lugar para qual ela quer ir que é o centro da pessoa, aquilo que nós chamamos, o sentimento, os nossos afetos. Aquilo que nos constitui felizes ou infelizes, não é o que nós sabemos, mas é o que nós sentimos. Arte é para o sentimento, é para a sensibilidade, é para a inteligência do coração e não para a nossa inteligência lógica. São Tomás de Aquino que falou sobre tudo na sua Suma Teológica, ele disse: “Todo ser é belo”. Se alguma coisa é, ela é bela. E a arte revela. O ser e toda obra verdadeira é, necessáriamente, bela. Ela tem o jeito belo de mostrar até a feiura, é por isso que uma obra verdadeira retratando alguma coisa horrível e asquerosa pode nos mover a ter aquela obra na parede, ou ter em casa ou comprar um livro ou comprar o disco, porque a beleza do ser ela é irretocável seja de que forma esse ser se apresente. Porque a beleza na arte, sendo beleza na forma, ela não é assunto! A gente faz muito esse equívoco: “a arte é o assunto, o enredo da novela, o enredo do romance, aquilo que a poesia ta falando”… Não é isso que é a beleza! Não é o que está sendo dito, mas como está sendo dito. Não é a coisa, mas como ela se move através da mão do criador e é isso que nós chamamos forma. Não é o que está se mostrando, mas como se mostra. Se não fosse assim, guerras, execuções, moribundos, enchentes, todo tipo de catástofre não podia ser retratado pelo artista porque não é coisa bonita, não é coisa que se pode aparecer. A arte fala de absolutamente tudo porque qualquer coisa é a casa da poesia. Ela não escolhe tema nem enredo, nem assunto. Ela pousa onde lhe apraz e é esse o momento que é apreendido pelo poeta ou pela cineasta, enfim.
Agora nós podemos perguntar: “Por que a arte nos humaniza?” Porque mostra não a aparência, mas nos induz por causa da emoção que ela nos causa. Ela nos induz à intimidade, à alma das coisas, à nossa própria intimidade e é por isso que ela nos comove; porque mexe. Não em nossos pensamentos, mas em nossos afetos, naquilo que nós sentimos – e toda obra me oferece um espelho. A obra é um espelho. Ela faz com que eu me reconheça nela. Se você diante de um livro diz: “como esse autor pôde tocar nisso? Eu achava que só eu sentia isso, só eu sabia disso”. Aí é que está o nosso equívoco, e aí mora a universalidade da obra verdadeira. Qualquer obra feita na China, Japão, Canadá, no Brasil – verdadeira – ela tem o dom de espelhar a humanidade, aquilo que nos é comum. E nada mais comum em nós do que nosso desejo, de que nossos afetos. Queremos ser felizes e temos medo, temos compaixão, temos ódio, temos ira, temos bondade, todas as boas e más paixões que nos habitam. É esse material que faz a obra de arte. Ela não é um pensamento filosófico. Ela expressa aquilo que nós sentimos, aquilo que é humano e só por isso ela me alimenta porque ela dá significação e sentido na minha vida. Isso é muito interessante porque nós todos padecemos de uma angústia imensa; uma das primeiras angústias humanas, que é a angústia do tempo, da finitude, nós começamos e acabamos, somos finitos, nós passamos. A obra de arte não sofre esse desgaste, ela está fora do tempo. Uma emoção muito profunda que você teve, uma paisagem muito bela que você viu, qualquer coisa que te comoveu, comoveu e passou. Mas, quando aquilo é apreendido num quadro ou numa poesia, qualquer forma de arte, essa obra segura o tempo pra mim. Ela não apenas segura o tempo, mas ela tem uma qualidade que nós perseguimos sempre, que é a unidade do nosso ser, a unidade da nossa experiência, porque nós vivemos de maneira fragmentada. Quantas coisas nós ja fizemos hoje? Tudo fragmentado! Uma hora é tomar café, uma hora é tomar banho, uma hora é se vestir… Tem fragmentos de tempo e nós queremos uma coisa eterna, unidade, na unidade que dure, que perdure e que não sofra essa solução de continuidade. Então a coisa mais próxima disso que nós temos enquanto estamos vivos é a arte, você contempla um quadro, escuta uma música, aquilo está inteiro e porque está inteiro ele me dá sentido, me da um eixo, me dá alegria.
A arte consola, conforta, é pão espiritual. Há uma fome em nós que nenhuma prosperidade material, que nenhum sucesso material pode saciar, você continua faminto, faminto de transcedência, algo que me diga “você é mais que seu corpo, você é mais do que suas necessidades básicas, você é mais do que essa coisa quantitativa, você é aquilo que está presente no seu desejo, no seu sentimento e na sua alma.” A gente vê pessoas, por exemplo, que não são capazes – por uma série de motivos – ou que nem pensam nisso, em articular esse desejo, só falam assim: “ah, mas que coisa boa que tem isso”. Tem algo mais nos acenando – nos acenando de onde? Não é a religião que inventou, não é a filosofia que inventou, está acenando de dentro do nosso próprio ser. É um desejo profundo que nós experimentamos na nossa orfandade original, e nós ja nascemos órfãos de ter sentido na vida, de ter significado e de ter perenidade. Não pode acabar. Esse é o desejo que nós temos. E isso tudo significa- a pessoa que tem essa experiencia, que tem esse desejo – nós dizemos que é uma pessoa que tem vida interior, vida simbólica. Nós podemos dissecar um corpo, abrir um cadáver e nós não vamos achar onde está isso, mas essa pessoa viva nos diria desse desejo, desse sentimento, capacidade de sofrer, de ter frustrações, dores profundas, depressões indescritiveis e alegrias indescritiveis. De onde vem isso, de onde nasce isso a não ser da própria profundidade da nossa alma e de nosso sentimento? Então, a arte nasce daí e produz apartir daí, o autor não tem poder sobre sua obra nesse sentido, ela é dada e oferecida como um dom para a alegria de toda comunidade humana.
Imagine nós sem isso! Mas quando a gente procura a arte é tão maravilhoso, porque sem saber e sem querer nós estamos procurando as coisas espirituais, aquilo que não tem peso, nem tempo, nem medida… Mas, que sem isso, a gente está regredindo a pura barbária, nós nos tornariamos bárbaros. A arte nesse sentido, ela consola, conforta, alegra e as vezes com muito choro. Há obras que nos deixam prostrados, às vezes falando sobre nada. Tem um poema que é impossível não falar, do Drummond que se chama “Tarde de Maio”. É um dos poemas mais maravilhosos, pra mim, que ele escreveu. É um poema longo, mas ele é constrangedor, tal é a beleza dele. Ele fala sobre o Sol se escondendo no acaso, uma tarde luminosa de Maio, aquela luz própria de Maio. É isso, ele fala sobre isso, sobre nada quase, e no entanto, esse é o puro alimento do espírito, porque só o homem pode se comover com o Sol que se esconde no horizonte, com a árvore florida, com as coisas mais mínimas, mais cotidianas, que escondem em si mesmas a beleza – e é essa beleza que toda arte procura. É tão forte que há pessoas que começam a olhar flores depois que viram flores no poema. Então, foi a força movedora e comovedora da arte – que faz com que abramos os olhos para a maravilha da criação, a maravilha da experiencia humana que nos aguarda. Qual o papel da obra de arte? Nenhum, ela é expressão pura. Você encontra um pintor, por exemplo, desenhando e apagando desenhando e apagando… Até se comprazer e falar “agora ficou bom”. Agora o que? Um ramo, uma fruta, um perfil… coisas que não valem absolutamente nada. É dessa matéria imponderável sem valor quantitativo que é feita a obra de arte. Um quadro valer milhões é o mesmo que não valer nada, porque não tem como medir a importancia, a magnitude daquilo que está expresso numa obra. Então, os artistas – apesar de si mesmos – o que funciona é a obra, ela estar dizendo ou não.
E por causa dessa qualidade eterna eu vejo que, para a humanização, a arte está no mesmo caminho da fé religiosa e da mística. Porque ambas experiências são independentes da razão, são experiências. A beleza é uma experiência, ela não é um discurso. Se você, por exemplo, passa todo dia por um lugar e vê determinada obra, determinada casa ou determinada coisa, e um belo dia você se espanta com aquilo , pode dar graças, você está tendo uma experiência de natureza poética e ao mesmo tempo religiosa. Religiosa porque liga você a um centro de significação e de sentido. E é uma palavra, a palavra poética foi considerada a linguagem por excelência. Ela não suporta enfeite. Se você enfeitar um poema, já é um desastre absoluto. Guimarães Rosa falava assim: “Não tenha medo de cortar quando estiver escrevendo”, às vezes está até bonitinho, corte sem dó. Não preciso mais daquilo, você ja disse, e quanto mais eu invento mais é o estrago, sobra a retórica. O que é a “retórica”? É quando a expressão do sentimento é maior do que ele.
Esses braços da experiência humana que são arte, mística e fé ,para mim, são braços de um mesmo rio. Então, se as escolas compreendessem isso… O ensino hoje está voltado para a parte lógica, o intelectual no sentido pior, aquilo que não toca o sentimento. Essa idéia é equivocada assim como é equivocada a idéia do poeta: “se vocês querem dar uma função importante para alguém não dê para o poeta, porque ele está com a cabeça nas nuvens”. A arte não aliena ninguém, ela não tira da realidade, o contrário, ela traz para a realidade, toca na intimidade. A poesia sendo expressão pura – e ela não sendo um discurso lógico – ela me dá o peixe sem que eu precise de estender o anzol.
A fome de beleza é universal. Nós não podemos achar que alguém não entenda isso, todos entendem! Há pessoas que têm vergonha de entrar na livraria, não é porque não queiram, é vergonha. Isso eu acho que é culpa do nosso sistema de educação que não coloca o ensino da lingua via literatura brasileira. Nós precisamos da beleza, beleza não é luxo, é necessidade. Quando Jesus estava comendo na casa do fariseu, Madalena derramou balsamo caríssimo nos pés de Cristo. Judas falou: “Que disperdício, onde já se viu fazer uma coisa dessa, dinheiro que podia dar comida aos pobres.” Cristo respondeu: “Pobres vocês sempre terão convosco, mas ela (Madalena) está me ungindo para a sepultura”. Nós precisamos disso! A Arte não é econômica, ela é generosa. É muito difícil a pessoa se dar conta de que todos nós, artistas ou não, pobres ou ricos, só temos o cotidiano, o cotidiano de todo mundo é absolutamente ordinário. A cada um de nós, cabe a vida comum, o cotidiano. E eu tenho a absoluta convicção que é atrás e é atravéz do cotidiano que se revelam metafísica. A beleza, está na criação, já está na nossa vida. Drummond tem um poema que, por outras vias ele fala assim: “Eu não sabia que a minha vida era mais bonita que a de Robinson Crusoé”. Essas vidas ficaram encantadoras depois que passaram. O mais bacana é a gente tirar o nosso heroísmo do nosso cotidiano.
Só a morte é que dá um perfil para nós. Depois que a pessoa morre, falamos: “coitado”. À vezes é heróico. Pra mim, cotidiano é o grande tesouro! Ortega y Gasset: “Adimirar-se daquilo que é natural é que é o bacana”. A alma, criadora, criativa, sensível, um belo dia se adimira de algum ser como a água. A vida é extraordinária. Admirar-se de um Bezerro de duas cabeças qualquer débil mental se admira. Admirar-se do que é natural, só quem está cheio do Espírito Santo. É outro olhar. O mundo é magnífico! Todos nós queremos no nosso “curriculo da vida” um ato heróico, às vezes o ato mais heróico da nossa vida é o mais anônimo, é o mais silencioso, que só Deus sabe. Isso que é a maravilha! O cotidiano pra mim tem esse aspecto de maravilha, de tesouro.
“Há mulheres que dizem: meu marido se quiser pescar pesque, mas que limpe os peixes. Eu não, qualquer hora da noite me levanto, ajudo a descamar, abrir, retalhar, desalgar. É tão bom a gente sozinhos na cozinha. De vez enquando os cotovelos esbarram e ele diz coisas como: esse foi difícil, dando rabanadas e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo, por fim os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam, somos noivo e noiva. Não tem coisa mais ordinária do que limpar peixe, mas é um ato humano, o que é humano já está combinado que é maravilhoso.
Louvado seja Deus meu Senhor porque o meu coração está cortado a lâmina, mas sorrio no espelho ao que a revelia de tudo se promete, porque sou desgraçado como um homem tangido para a forca, mas me lembro de uma noite na roça, o luar nos legumes e um grilo, minha sombra na parede. Louvado sejas porque eu quero pecar contra o afinal sítio aprasivo dos mortos, violar as tumbas com o arranhão das unhas, mas vejo tua cabeça pendida e escuto o galo cantar três vezes em meu socorro. Louvado sejas porque a vida é horrível, porque mais é o tempo que eu passo recolhendo os despojos. Velho é o fim da guerra como macabra, mas limpo os olhos ,do muco do meu nariz, por um canteiro de grama. Louvado sejas porque eu quero morrer, mas tenho medo e insisto em esperar o prometido. Uma vez quando eu era menina quando abri a porta de noite, a horta estava branca de luar e acreditei sem nenhum sofrimento, louvado sejas.”
Mas agora uma boa notícia, no céu, os militantes, os padecentes, os triunfantes seremos só amantes. Muito obrigada!
8 Comentários
Liz
19 de abril de 2012Excelente.. Adélia é daquelas que renova mesmo o dia dentro da gente! .. é Minas!
Catharina
22 de abril de 2012Maravilhoso vídeo… fiquei ainda mais encantada por Adélia….! =) Compartilhado tb no facebook: vamos democratizar a poesia…! Obrigada pelo “presente”…
Talita
7 de maio de 2012Que maravilha, amava os poemas, agora amo tb essa simpática senhora, quanta sabedoria e poesia cabe numa pessoa? Valha-me Deus. “Deus seja louvado”.
Lisa Valéria
9 de maio de 2012E pensar que tanta sabedoria só foi compartilhada – para livros e/ou afins – a partir dos seus 40 anos, quando começou a publicar 🙂
Estou a pensar…. por que nao após os 4o e uns? 😛
Maria Zélia Pinheiro
15 de maio de 2012Valeu, Adélia, você me fez transcender!
Gutto Reis
14 de março de 2013Que maravilhosa, que sabedoria, verdadeiramente o mundo carece de muitas Adélias.
Anderson
25 de abril de 2013Muito prazer, Adélia. Já te conhecia de ouvir falar, agora não mais. (:
Encantado!
Nossa Brasilidade » Jorge Camargo – Embelezar
25 de abril de 2013[…] Segundo Jorge Camargo, a canção “Embelezar” nasceu depois que ele se encontrou com a poesia de Adélia Prado e sua estética. Você pode saber mais de Adélia aqui. […]