A DELICIOSA ANTÍTESE APOCALÍPTICA DE TOM ZÉ
Na herança cristã, o livro do Apocalipse é bastante controvertido. Desde as discussões iniciais sobre se deveria ou não ser incluído no cânon do Novo Testamento, até sua comparação com os outros textos de literatura apocalíptica, através de vinte séculos de história ele tem tido as mais diversas interpretações. Nas idades moderna e contemporânea, no entanto, as conclusões sobre ele têm sido as mais mirabolantes. De um livro escrito para encorajar os cristãos sob intensa perseguição romana, um texto cujo tema central era a esperança, o Apocalipse passou a ser sinônimo de catástrofe e de destruição, de escapismo e de alienação.
Aí vêm os nossos amigos poetas da MPB, pra nos ajudar a resgatar valores que nos são tão caros e que incluem a felicidade vindoura e a esperança escatológica, como no caso da linda canção do Tom Zé, Menina Amanhã de Manhã, que afirma categoricamente que a felicidade irá desabar sobre os homens, em contraste agudo com a morte e a destruição prenunciadas pelo texto sagrado e que desabam sobre a humanidade. E mais, a felicidade como um bem inexorável, inevitável, quase que imposto à vida, do qual ninguém pode (nem gostaria de) escapar. E terminando com um convite sutil: “não queira dormir no ponto”. A felicidade está à mão. Não deixe que ela vá embora, menina.
Pra não terminar sem fazer justiça ao Apocalipse, o contraste entre a canção e o livro não é tão gritante assim: apesar de falar sobre destruição e morte, o livro termina falando de vida, de paz duradoura, de cura para as nações, de felicidade enfim.
Menina amanhã de manhã
Quando a gente acordar
Quero te dizer que a felicidade vai
Desabar sobre os homens, vai
Desabar sobre os homens, vai
Desabar sobre os homens
Na hora ninguém escapa
Debaixo da cama, ninguém se esconde
A felicidade vai
Desabar sobre os homens, vai
Desabar sobre os homens, vai
Desabar sobre os homens
Menina, ela mete medo
Menina ela fecha a roda
Menina não tem saída
De cima, de banda ou de lado
Menina olhe pra frente
Oh! Menina, tome cuidado
Não queira dormir no ponto
Segure o jogo, atenção
De manhã…
por Jorge Camargo
Ouça abaixo a gravação original feita por Tom Zé no genial “Estudando o Samba” de 1976.
Jorge Camargo é músico, professor, tradutor (juramentado, em inglês), intérprete de conferências e escritor. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. É também sócio-proprietário da empresa Quase a Mesma Coisa, dedicada a tradução e interpretação, em diversos idiomas.
Tem mais de 30 anos de experiência musical, como compositor e intérprete. Pesquisa a presença, a influência e a importância do sagrado na música popular brasileira e as interfaces entre a arte, a cultura, a filosofia e a religião.
2 Comentários
emerson
20 de fevereiro de 2014Muito bom as colocações que desmitificam as idéias preconcebidas sobre vários temas que nos permeiam, precisamos de pessoas cristãs abertas ao que e novo, e também aquilo que traz o frescor de uma nova era apocalíptica sobre nós. Valeu!!!
Alberto
2 de fevereiro de 2016Então, vale muito a pena contribuir com a causa de encontrar espiritualidade também na música dita secular. Isso pode nos levar à conscientização de que não se deve separar “música sacra/gospel/evangélica” de “música secular”. O que existe, na verdade, é “Música” e ponto final. Letra é uma questão à parte, que, se quiserem, pode ser discutida. Mas Música, acredito que não.