Não toco Cartola mas sou brasileiro!
Você não precisa saber quem é Cartola para ter certeza da sua brasilidade. O grande nome da Mangueira talvez nunca ouviu falar de VPC, por exemplo, do disco “De Vento em Popa” – gravado em 1977 – na mesma época em que estava deixando o morro para morar em Jacarepaguá.
No entanto, isso não o torna menos brasileiro do que foi. Digo isso em resposta a um curioso e rápido diálogo travado no último domingo entre meu vizinho e eu. Veja como foi:
– Diz aí Jairo, o que você quer ouvir?
Perguntei ao vizinho, enquanto dedilhava uma melodia improvisada no meu velho violão.
– Ah, sei lá… Toca um sambinha aí. Toca Cartola!
– Ummm… Cartola, deixa eu ver…
– Pô Marcos, você não é o cara da brasilidade?! Me interrompeu o fanfarão. Sem deixar eu terminar a busca pelo sambista, Jairo introduziu uma brilhante questão, cortante como uma faca bem afiada. Na hora, entendi aquilo como uma revelação. Guardei pra mim e segui na melhor resposta que pude encontrar naquele momento.
– Serve Nelson do Cavaquinho? “O sol há de brilhar mais uma vez/ A luz há de chegar aos corações…” Cantei um pedaço da música e logo depois a Débora – minha esposa – chegou e fomos para o jantar.
Por que a pergunta do meu vizinho gaiato é tão genial? Está na cara: para ele a configuração da nossa brasilidade é aquela mesma construída há pelo menos 70 anos pela intelectualidade do nosso país, onde ser brasileiro é gostar de samba, futebol e cerveja, ser brasileiro é reverenciar o morro – principalmente os morros cariocas, já que é de lá que tiraram todos os artistas e os transformaram em ícones da nossa própria identidade. Afirmar uma personalidade nacional é se submeter a um ideal identitário construído por senhores estudiosos e homens da mídia polarizados no Rio de Janeiro. Eles, basicamente fizeram do paradigma português-africano-indígena-imigrante a base para sua argumentação e essa base (Da Matta, Freyre, Holanda, Prado Jr., Ribeiro) ainda é a estrutura firme onde pisam todos que vão falar sobre o que faz o brasil, Brasil.
Mas, vale notar que esses mesmos intelectuais que ordenaram a tal identidade hegemônica nunca deixaram de dizer que não existe UMA brasilidade apenas, mas MUITAS brasilidades. O que tento afirmar aqui é exatamente essa brasilidade que não sabe Cartola, desse sujeito que não teoriza sua vida a partir do Rio de Janeiro, mas que nem por isso deixou de ser assim um brasileiro legítimo.
Outro Brasil vem aí, Jairo. Outro Brasil já está.
Abraço demorado
Marcos Almeida
4 Comentários
Melissa
27 de março de 2012interessante a visao. Gostei. Valeu! É isso, o brasileiro é diversificado mesmo. e quem ouve Palavrantiga? é brasileiro tb! ao meu ver!
Paulo Max
28 de março de 2012Muito bom, Marcão! Abraços e saudades.
Carlos Silva
28 de março de 2012Mto bom, Marcão!!!
Ganhei o dia só pq vc me fez refletir: ah, não preciso me preocupar porque não sei a discografia desse ou daquele “consagrado” ícone no meio de tantas culturas brasileiras (consagrado por esses ‘intelectuais’ que criam uma cultura mista de bossa-nova e samba). E olhe que eu ouço e gosto muito de gente como Cartola, Gonzagão, Jackson do Pandeiro, Vinicius, Jobim, VPC, Sérgio Pimenta, Janires etc…
Aproveitando, te desejo (atrasado mas sempre a tempo) todas as felicidades para a família que crescerá…
Carlos Silva
28 de março de 2012Só acrescentando: no meio cristão há muita gente boa, que se gastou e se foi sem ganhar nada material com música, nem reconhecimento no seu próprio meio… Se quiser, dá uma pesquisada em Josué Barbosa Lira – gravou 136 LPs e mais um tanto de compactos e CDs, compondo músicas que até hj se cantam nas igrejas, e faleceu no ostracismo…