CONSTELAÇÃO, MALABARISTA E GLOBO DE NEVE
Vou falar de três nomes. Ouça atentamente.
Veja o Gospel; ele é a grife da dualidade. Entretenimento e religião o tempo todo a contradizer a própria sigla. Eterna tensão. O Gospel quer o templo no palco e acaba trazendo o palco para o templo. Mas, de repente, surge nos anos 2000 o movimento de “adoração” que deseja resolver aquele contínuo contradizer pela supressão do entretenimento. Tentam com isso eliminar o outro lado da polaridade. Esse objeto que o Gospel insiste em fazer coexistir com a maneira de ser da igreja, começa a ser bombardeado. E aí, não existem mais artistas, somente adoradores. Não existem mais palcos, apenas altares. Realizam agora um sonho davídico anacronizado num utópico tabernáculo pós-moderno que utiliza itens do entretenimento de massas, como o rádio e a TV, para didaticamente higienizar o meio com o fogo da santidade levítica. [desculpem os não-evangélicos que leem esse texto, mas preciso usar algumas palavras do nosso vocabulário interno, calma aí, no final vocês vão entender].
Essa solução do movimento 2000 é monótona para o entretenimento. Sim, todos já sabem disso: a ‘música de adoração’ fora do ‘ambiente de adoração’ não faz tanto sentido, ela é uma música-experiência. Daí, é muito difícil aprecia-la isoladamente como obra de arte. O movimento 2000 é oposição forte ao entretenimento e de certa forma ao exercício de fruição estética. Esse movimento chamado de ‘adoração’ quer o templo pela eliminação do palco, sem no entanto abrir mão da mídia.
Uma música brasileira de raiz cristã tem sido nosso slogan e representa a maneira de vermos a relação entre fé e cultura. Consideramos que na amálgama de uma cultura mais ampla, que aqui chamamos brasileira, temos um núcleo que é a fé cristã, a ética decorrente de uma comunidade de fé e consequentemente os artefatos culturais que nascem desse lugar tão vivo. É preciso diferenciar esse nome dos dois outros acima! Usando algumas imagens vou tentar ser mais claro.
Malabarista e Globo de Neve
Vejo o Gospel como um jovem malabarista, mantendo no ar algumas bolinhas de pesos diferentes, uma delas é a religião, outra o entretimento. Não poucas vezes elas se tocam, despencam no chão, deixando o malabarista envergonhado, mas logo ele as toma de volta e começa tudo de novo. Por outro lado, vejo o Movimento de Adoração como aquele impressionante presente que o papai trouxe no Natal, e que encantou a todos: o globo de neve. Dentro desta única esfera podemos ver a neve caindo sobre a casinha, basta sacudir com jeitinho e colocar sobre a mesa, mil sensações se desprendem da gente – parecem querer a bola, morar na neve, ficar pra sempre dentro de um globo de vidro.
Constelação
Tenho dito a quem me dá a honra de ser ouvido que no desenvolvimento da nossa brasilidade discernimos três tipos de ações básicas: redimir, rejeitar e inventar. Mas é preciso entender o lugar dessas ações e elas se dão no todo da vida, no mundo real. E o que é o todo da vida; o mundo real? É onde o palco está conectado com o templo, onde a capela comunica com o teatro, que fala ao mercado, que ouve a família, que deseja a arte, que se entretém no cinema, que escolhe seu governante, que obedece ou subverte as leis do país, que faz suas economias, que deseja o Eterno! O mundo real é uma constelação, uma espiral de muitas esferas brilhantes! Considere distinguir essas coisas no sentido de discernir, não de isolar. Porque , você vai ver que, embora distintas, todas elas estarão sempre conectadas.
Que Viagem é Essa?
Essas ideias não brotaram na minha cabeça do nada. É resultado de anos de oração, meditação, conselho, estudo e pé na estrada. Fazer parte de uma banda brasileira de rock, dialogar com gravadora, estar na Universidade, falar com rádios e blogs, conversar com artistas e produtores, servir numa comunidade cristã cosmopolita, ser pai, ser esposo e filho, poder ouvir a intelectualidade cristã e não-religiosa, tudo isso, tem permitido gestar um pensamento, mas um pensamento feito para agir.
O difícil é o óbvio
Quem explica dá o molde e as duas fontes de explicação milenares são a teologia e a filosofia. É admirável encontrar no último livro do Lobão dois caras como Chesterton e Olavo de Carvalho formando as bases do seu texto crítico e muito divertido sobre a cultura popular. Mas não deveríamos nos assustar tanto assim, porque todos falam a partir de uma explicação de mundo, os famosos “pressupostos”, a surpresa é ver o ícone da rebeldia roquenrou se tornando um direitista de bases cristãs! Indubitavelmente a ironia de Chesterton e Carvalho apimentaram ainda mais a sagacidade do Lobón – o que não diz nada a respeito de filiação religiosa ou reforma de conceitos. Mas, o que quero dizer com esse exemplo é que falamos sempre a partir de categorias apreendidas dessas fontes de explicação; teologia e filosofia. Seja nas bibliotecas ou na sua forma diluída dentro do cotidiano, quando passam a ter uma cara de trivialidade, anestesiando, como diz certo amigo, o nosso senso crítico. É que podemos ser enganados pelas palavras difíceis de um teólogo ou filósofo, mas, somos constantemente ludibriados pelo senso comum, quando arrogantemente já achamos tudo óbvio demais.
Categorias de pensamento
Acho útil apresentar as ideias de ‘família nuclear’ e ‘família estendida’ para vocês. A partir do que disse o Dr. Peter Wagner – irmão muito respeitado pelos pentecostais e esnobado pelos liberais. Esse é um conceito da antropologia que serve para dizer o seguinte: existe a igreja no templo, no local de reunião, a famosa igreja de domingo, chamada por ele de família nuclear e existe a igreja da segunda-feira, do mercado de trabalho, que poderíamos chamar de igreja na rua, denominada por família estendida. Para ele, existe um abismo cultural entre as duas igrejas.
D.A. Carson sugere os termos ‘cultura local’ e ‘cultura mais ampla’. Herman Dooyeweerd falaria em ‘modalidade pística’ e ‘modalidade estética’, ao falar de igreja e arte. Darrow Miller usa a imagem de ‘acampamento’ e ‘portas da cidade’, para indicar a ideia de algo que acontece ‘dentro’ e que se estende ‘fora’. Seja quem for o mestre, todos eles estão ensinando sobre como viver a vida no meio do mundo. Isso quer dizer que a ideia de constelação ou soberania das esferas, da qual sou filho, tem muitas semelhanças com todos esses movimentos de resposta ao problema fé e cultura, templo e trabalho, igreja e rua. Todos querem uma vida mais inteira, na íntegra!
De volta aos nomes
Chamei o gospel de Malabarista. Tomei o movimento de adoração como um encantador Globo de Neve. Enxerguei na música brasileira de raiz cristã essa surpreendente Constelação, uma espiral de muitas esferas brilhantes, cada uma com seu jeito de brilhar e que juntas formam um grupo de incontáveis conexões.
Nessa nova música brasileira não existem fãs, mas cúmplices. A vida que a gente vive na vitrine do mundo. Esse novo movimento considera a porosidade espiritual da cultura popular e não ignora o sagrado na rua. Essa arte da ‘família estendida’ reflete a realidade da ‘família nuclear’ junto aos ‘portões da cidade’, numa ‘cultura mais ampla’, mas jamais ousaria profanar seu lugar de ‘acampamento’, já que negócios são tratados fora da tenda, lá no mercado, junto aos portões e nunca dentro de casa.
Acredito que o Gospel precisa se reinventar ou irá desfalecer, afinal de contas nenhum malabarista consegue ficar tanto tempo equilibrando bolas de pesos diferentes.
O movimento de adoração pode avivar nosso culto comunitário e torna-lo outra vez extraordinário, intenso, inesperado e cada vez mais desinteressante para o entretenimento! Um Globo de Neve cognoscível e misterioso.
E a Constelação, ela brilhará intensamente. Brilhará ainda mais quando apagarmos o sol da nossa insensatez, sol que nos cega diante do óbvio e nos amarra ao trivial. Ela brilhará quando eu aprender a olhar para o céu e ver que tudo na vida está diante da face de Deus! Ela brilhará quando for “assim na terra como no céu”.
Marcos Almeida para o Nossa Brasilidade
30 Comentários
Antognoni Misael
7 de agosto de 2013Mano, que texto.
Estou encantado aqui, pois pensava nisso, mas nunca consegui conjecturar as ideias. Perfeito.
Posso compartilhar no nosso blog não é?
Marcos Almeida
7 de agosto de 2013Obrigado Misael. O texto agora é seu, fique a vontade.
Rafaella Dutra
9 de agosto de 2013Nossa!!! Ótimo texto! Me fez lembrar do apelo ao fim da “cultura gospel” que o Rodolfo Abrantes fez… Também gostaria de colocá-lo em meu blog.
Kelly
7 de agosto de 2013Ótimo texto.
Nanderson Melo
7 de agosto de 2013Simplicissimamente belo! Parabéns.
O problema é que alguns não conseguem entender que realmente o gospel precisa urgente se reinventar e a consequência é fazer pouco caso sobre esse artigo e sobre fatos atuais, mas como nosso saudoso Herbet Vianna falou em sua poesia
“Eu quis dizer
Você não quis escutar
Agora não peça
Não me faça promessas…” Herbert Vianna
Eder Moura
7 de agosto de 2013Brother, que texto fantástico.
Minha admiração. Suas palavras tem arejado mais minha mente a cada dia; Ampliando meu horizonte e me fazendo contemplar essa emocionante e maravilhosa “Constelação”.
“assim na terra como no céu!!!” Amém!
‘Aquele abraço’
Lucas Fonseca
7 de agosto de 2013Como diz o tio DELICIUS “bravo Marco!”
Tiago da Rocha
7 de agosto de 2013Gde Marcos. Excelente texto. Concordo contigo! Também gostaria de compartilhar em meu blog. Pode ser meu irmão?
Abração!
Marcos Almeida
8 de agosto de 2013É tudo nosso.
Raphael dos Santos
7 de agosto de 2013Cara, eu queria ter essa capacidade de elucidar os pensamentos. Convenceria muita gente de tudo isso que você explanou de forma tão clara nesse texto. Acho que a quebra desse dualismo traria muita gente pra perto de Deus.
Abração, que Deus continue te abençoando.
alex beato
7 de agosto de 2013Incrível Marcos que belo texto, gosto da conjunção de suas idéias e uma visão inteligente dos fatos, texto maravilhoso mesmo Parabéns sentia falta de ler algo assim tão completo e impactante, é óbvio que os outros não querem ver.
E muito bom ver pessoas que tem o mesmo pensamento das coisas que presenciamos todos os dias abraços!
Mac Junior
8 de agosto de 2013Marcos, estou cada vez mais impressionado com a visão de vida q vc tem… não só pelos textos e pelas letras da banda; mas pelo conjunto da obra, por alguns “frutos” brotando nas ruas, q estou presenciando através de algumas correntes do bem aqui na região. Não que eu veja vc como um “ídolo musical” a ser seguido, (se bem q me lembra certos Rauls ou Renatos Russos em algumas coisas kkk) só to vendo com apreço o andar e o teu falar e admirando a luz q Deus emana de vc brother. Continue semeando essas idéias na nossa mente. Vlw
Lucas Almeida
8 de agosto de 2013MArcos, que texto maravilhoso! Simplesmente fantástico! Quem não desperta para coisas como esta vai ficando para traz, até mesmo igrejas tradicionais onde se vê muitos “cabeças brancas” e nenhum jovem por não trazer a inovação.
Jesus continue te abençoando
» CONSTELAÇÃO, MALABARISTA E GLOBO DE NEVE MUNIL
8 de agosto de 2013[…] brilhará quando for “assim na terra como no céu”. Marcos Almeida para o Nossa Brasilidade (http://nossabrasilidade.com.br/constelacao-malabarista-e-globo-de-neve/) […]
Rodolfo Coelho
8 de agosto de 2013Parabéns pelo texto!
Sou pastor, músico e sempre venho aqui pra ser esclarecido sobre fé e cultura de maneira única. Sou um grande apreciador de sua arte, obrigado!
Uelinton Costa
8 de agosto de 2013Excelente texto! Parabéns!!!
Rebeca
8 de agosto de 2013Incrível!!!!!!!!!!!!!!!! Vc é formado em que?
Felipe Antunes
8 de agosto de 2013Meu brother, como já te disse pessoalmente sou grato pela sua vida, pela sua capacidade de transmitir ideias profundas de forma simples, por fazer a ponte entre pensadores e o povo. Muitos só tem tido acesso a reflexões sobre arte, cultura e religião no Brasil graças a você. A cada encontro físico e virtual te admiro mais! Peço a Deus que Ele sempre mantenha claro sua memória a respeito dessa Graça. E vamos simbôra nesse rio…
Abração,
Lucas Freitas
8 de agosto de 2013Viva! Refresco pras nossas mentes confusas e bombardeadas por uma revolução anunciada. Marquin tu tá no front! Alegria ter você sobre o nosso chão!
Hugo Leonardo Ribeiro
9 de agosto de 2013Parabéns Marcos.
Mais um belo texto, deixou minha criatividade agitada rs, não saberia me expressar tão bem sobre esse tema tão importante.
Acredito que não só o gospel, mas a igreja em geral chegou em um ponto crucial em sua história e algo precisa urgentemente ser feito.
Tudo virou mercado, mas algumas pessoas não querem essa realidade, pode se vera isso através do número de compartilhamento do vídeo do Rodolfo, acredito que chegou o momento de pegar o exemplo de lutero e muitos outros e reescrever o que é igreja, o que é cultura protestante, pois em algum momento nos perdemos.
Parabéns mais uma vez por falar o que precisa ser dito.
Da uma passada no meu blog, não tão bem escrito quanto o seu mas são os barulhos da minha mente rs.
Deus abençoe
Lorena Chaves
10 de agosto de 2013Te amo meu brother! Você é o cara!
Leandro Cruz
13 de agosto de 2013Embasbacado com a profundidade simplificada do assunto. Um bolo bem preparado e recheado com pensamentos íntegros a respeito do momento tão confuso que vive a igreja!!! Mas que com bom senso e sabedoria tudo se coloca no lugar e cumpre seu papel. Parabéns pelo texto…copiado colado compartilhado e lido muitas vezes. Abçs
François Freitas
15 de agosto de 2013Esse texto valeria um palavrão de tão fantástico e coerente! Marcos, fique em paz e mantenha-se sempre (proféticamente) no Amor que nos faz Um!
Regiane Santos
15 de agosto de 2013É Marcos… vivemos sempre a angústia da dualidade! Quando essa dualidade esbarra na esfera de nossa fé tende a desnudar aquilo que não temos muita certeza, que nos deixa inseguros acho que é por isso que a igreja foge destas polêmicas. A Cultura Gospel hoje está mais para midiática que para espiritual. Os “astros” evangélicos se enamoraram pelos apelos do bom e velho marketing e a música virou só mais um suvenir. Fico feliz que existam suspiros no meio como o Palavrantiga, que tem boa música, conteúdo, expressão e que me inspira a um recomeço. Afinal, essa é a mensagem central do evangelho: recomeço! Parabéns pelo belo texto! Amo o trabalho de vocês e amo o seu jeito de escrever!
Kelson Anthony de Menezes
16 de agosto de 2013Olá Marcos! Sou seu cúmplice!
Eduardo Moraes (Manaus)
25 de agosto de 2013Muito bom Marcos!
Durante muito tempo tenho tido esse mesmo pensamento mas nunca o consegui expressar de forma tão clara como você o fez nesse artigo.
Tenho uma banda e desde 2009 partimos dessa mesma ideia do Palavrantiga. Contudo nunca conseguimos nos fazer ouvir e entender como vocês tem conseguido fazer. Fiquei muito feliz quando conheci o trabalho de vocês. Me senti aliviado por não ser um “louco” com ideias mirabolantes dentro da minha comunidade.
Deixo os meus parabéns a você e todos que têm entendido essa nossa brasilidade.
Lorena Aguiar
9 de setembro de 2013Maravilhoso!
Renato Marinoni
11 de setembro de 2013Marcos, BRILHANTE o seu texto.
Eu trabalho com a pesquisa e a análise histórica da música cristã contemporânea.
Você luta por uma música brasileira com raízes cristãs, pelo palco e show autênticos, e nós nos engajamos nessa mesma luta, só que com foco na igreja, na adoração congregacional.
Lutamos por um culto mais bíblico e vivo, como você disse no final.
Temos vários amigos em comum. Espero poder compartilhar com você alguns anseios, ideias e projetos. Se achar legal, podemos trocar e-mails!
Grande abraço
Marcos Almeida
11 de setembro de 2013Ei Renato, seria um prazer. Anote aí: marcos@palavrantiga.com
Obrigado pela mensagem!
M.
Marcelo Bittencourt
25 de outubro de 2013Sensacional! Que brilhe a constelação.