27 de Janeiro / A Lavoura de Luiz Fernando Carvalho – parte II

Postado por: em jan 27, 2012 | 2 comentários

                                                                                     Vinte e sete

 

Segue agora a segunda parte do impressionante diálogo entre André e seu pai. Um tipo de retorno do filho pródigo, retirado da brilhante adaptação que Luiz Fernando Carvalho fez da obra Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar.

O diretor da minissérie Hoje é dia de Maria, recortou  palavras, incluiu  expressões, reinterpretou o  texto original e produziu, assim, uma eletrizante cena, um reencontro entre pai e filho à mesa da família. Fez transparecer na arte a realidade de muitos lares (talvez o nosso), talvez o retrato da nossa história. Vamos acompanhar

 

“— O senhor não me entendeu, pai.

— Como posso te entender, meu filho? Existe obstinação na tua recusa, e isto também eu não entendo. Onde você encontraria lugar mais apropriado para discutir os problemas que te afligem?

Pai

— Em parte alguma, menos ainda na família; apesar de tudo, nossa convivência sempre foi precária, nunca permitiu ultrapassar certos limites; foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos.

Não receba com suspeita e leviandade as palavras que te dirijo, você sabe muito bem que conta nesta casa com nosso amor!

— O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele não sabe o que quer; não passando hoje de uma pedra no caminho. O amor nem sempre aproxima, pai, o amor também desune; e não seria nenhum disparate eu concluir que o amor na família não tem a grandeza que se imagina.

— Cale-se! Já basta de extravagancias! Seja simples!

— Não acho que sejam extravagâncias, se bem que já não me faz diferença que eu diga isto ou aquilo, mas como é assim que o senhor percebe, de que me adiantaria agora ser simples como as pombas? Se eu depositasse um ramo de oliveira sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele simplesmente um ramo de urtigas.

— Nesta mesa não há lugar para provocações, deixe de lado o teu orgulho, domine a víbora debaixo da tua língua, não dê ouvidos ao murmúrio do demônio. Seja humilde, André, me responda como deve responder um filho! Seja claro como deve ser um homem!

— Se sou confuso…

— Acabe de uma vez com a confusão nessa sua cabeça!

— Se evito ser mais claro …

— Cale-se! Não vem desta fonte a nossa água, não vem destas trevas a nossa luz, não é a tua palavra arrogante que vai demolir agora o que levou milênios para se construir! Ninguém em nossa casa há de falar mudando o lugar das palavras, embaralhando as ideias, desintegrando as coisas numa poeira, pois aqueles que abrem demais os olhos acabam só com a própria cegueira. Ninguém em nossa casa há de padecer também de um suposto e pretensioso excesso de luz, capaz como a escuridão de nos cegar. Ninguém ainda em nossa casa há de dar um curso novo ao que não pode desviar, ninguém há de confundir nunca o que não pode ser confundido, a árvore que cresce e frutifica com a árvore que não dá frutos, a semente que tomba e multiplica com o grão que não germina! A nossa simplicidade de todos os dias com um pensamento que não produz. Por isso, dobre a tua língua!  Nenhuma sabedoria devassa há de contaminar os modos da família! Não foi o amor, como eu pensava, foi o orgulho, o desprezo e o egoísmo que te trouxeram de volta à casa!

— “Chega, Iohána! Poupe nosso filho!” (entra a mãe, implorando com os olhos aflitos para o pai)

— Estou cansado, pai, me perdoe… ! Não trago o coração cheio de orgulho como o senhor pensa. Eu volto pra casa humilde e submisso. Não tenho mais ilusões, já sei o que é a solidão, eu já sei o que é a miséria. E sei também agora, que não deveria ter me afastado um passo sequer da nossa porta. De agora em diante serei como meus irmãos; me entregarei com disciplina às tarefas que me forem atribuídas, chegarei aos campos de lavoura antes que ali chegue a luz do dia, e só os deixarei bem depois de o sol se pôr. Farei do trabalho a minha religião, farei do cansaço a minha embriaguez. Eu vou ajudar a preservar nossa união, pai. Eu quero merecer de coração sincero todo o teu amor.

— Tuas palavras abrem de novo meu coração, querido filho. Sinto meus olhos molhados de alegria, apagando depressa a mágoa que você causou ao deixar a casa. Sinto uma luz nova sobre esta mesa; por um instante, cheguei a pensar que tinha semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda num campo de espinhos. Mas não… Amanhã vamos festejar aquele que estava cego e recuperou a vista! Agora vai descansar, meu filho. Meu filho querido.”

Filho