Guilherme de Carvalho / Como assistir “A Árvore da Vida” de Terrence Malick

Guilherme de Carvalho / Como assistir “A Árvore da Vida” de Terrence Malick

Postado por: em abr 1, 2012 | Nenhum comentário

Guilherme de Carvalho ainda é um desconhecido para muitos que esbarram com a gente na estrada e aqui na rede. Nem todos sabem que ele, juntamente com Rodolfo Amorim, são os responsáveis por me aplicar a tradição reformada na veia.

27 de Janeiro / A Lavoura de Luiz Fernando Carvalho – parte II

Postado por: em jan 27, 2012 | 2 comentários

                                                                                     Vinte e sete

 

Segue agora a segunda parte do impressionante diálogo entre André e seu pai. Um tipo de retorno do filho pródigo, retirado da brilhante adaptação que Luiz Fernando Carvalho fez da obra Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar.

O diretor da minissérie Hoje é dia de Maria, recortou  palavras, incluiu  expressões, reinterpretou o  texto original e produziu, assim, uma eletrizante cena, um reencontro entre pai e filho à mesa da família. Fez transparecer na arte a realidade de muitos lares (talvez o nosso), talvez o retrato da nossa história. Vamos acompanhar

 

“— O senhor não me entendeu, pai.

— Como posso te entender, meu filho? Existe obstinação na tua recusa, e isto também eu não entendo. Onde você encontraria lugar mais apropriado para discutir os problemas que te afligem?

Pai

— Em parte alguma, menos ainda na família; apesar de tudo, nossa convivência sempre foi precária, nunca permitiu ultrapassar certos limites; foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos.

Não receba com suspeita e leviandade as palavras que te dirijo, você sabe muito bem que conta nesta casa com nosso amor!

— O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele não sabe o que quer; não passando hoje de uma pedra no caminho. O amor nem sempre aproxima, pai, o amor também desune; e não seria nenhum disparate eu concluir que o amor na família não tem a grandeza que se imagina.

— Cale-se! Já basta de extravagancias! Seja simples!

— Não acho que sejam extravagâncias, se bem que já não me faz diferença que eu diga isto ou aquilo, mas como é assim que o senhor percebe, de que me adiantaria agora ser simples como as pombas? Se eu depositasse um ramo de oliveira sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele simplesmente um ramo de urtigas.

— Nesta mesa não há lugar para provocações, deixe de lado o teu orgulho, domine a víbora debaixo da tua língua, não dê ouvidos ao murmúrio do demônio. Seja humilde, André, me responda como deve responder um filho! Seja claro como deve ser um homem!

— Se sou confuso…

— Acabe de uma vez com a confusão nessa sua cabeça!

— Se evito ser mais claro …

— Cale-se! Não vem desta fonte a nossa água, não vem destas trevas a nossa luz, não é a tua palavra arrogante que vai demolir agora o que levou milênios para se construir! Ninguém em nossa casa há de falar mudando o lugar das palavras, embaralhando as ideias, desintegrando as coisas numa poeira, pois aqueles que abrem demais os olhos acabam só com a própria cegueira. Ninguém em nossa casa há de padecer também de um suposto e pretensioso excesso de luz, capaz como a escuridão de nos cegar. Ninguém ainda em nossa casa há de dar um curso novo ao que não pode desviar, ninguém há de confundir nunca o que não pode ser confundido, a árvore que cresce e frutifica com a árvore que não dá frutos, a semente que tomba e multiplica com o grão que não germina! A nossa simplicidade de todos os dias com um pensamento que não produz. Por isso, dobre a tua língua!  Nenhuma sabedoria devassa há de contaminar os modos da família! Não foi o amor, como eu pensava, foi o orgulho, o desprezo e o egoísmo que te trouxeram de volta à casa!

— “Chega, Iohána! Poupe nosso filho!” (entra a mãe, implorando com os olhos aflitos para o pai)

— Estou cansado, pai, me perdoe… ! Não trago o coração cheio de orgulho como o senhor pensa. Eu volto pra casa humilde e submisso. Não tenho mais ilusões, já sei o que é a solidão, eu já sei o que é a miséria. E sei também agora, que não deveria ter me afastado um passo sequer da nossa porta. De agora em diante serei como meus irmãos; me entregarei com disciplina às tarefas que me forem atribuídas, chegarei aos campos de lavoura antes que ali chegue a luz do dia, e só os deixarei bem depois de o sol se pôr. Farei do trabalho a minha religião, farei do cansaço a minha embriaguez. Eu vou ajudar a preservar nossa união, pai. Eu quero merecer de coração sincero todo o teu amor.

— Tuas palavras abrem de novo meu coração, querido filho. Sinto meus olhos molhados de alegria, apagando depressa a mágoa que você causou ao deixar a casa. Sinto uma luz nova sobre esta mesa; por um instante, cheguei a pensar que tinha semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda num campo de espinhos. Mas não… Amanhã vamos festejar aquele que estava cego e recuperou a vista! Agora vai descansar, meu filho. Meu filho querido.”

Filho

 

 

26 de Janeiro / A Lavoura de Luiz Fernando Carvalho

Postado por: em jan 26, 2012 | 4 comentários

Vinte e seis

A primeira parte do diálogo entre filho e pai, dentro da Lavoura Arcaica de Luiz Fernando Carvalho. Muito forte!

– Para que as pessoas se entendam é preciso que ponham ordem nas suas ideias: palavra com palavra.

– Toda ordem traz uma semente de desordem, e a clareza uma semente de obscuridade. Não é por outro motivo que falo como falo. Eu poderia ser claro e dizer, por exemplo, que nunca, até o instante em que decidi o contrário, tinha pensado em deixar a casa. Eu poderia ser claro e dizer ainda que nunca, nem antes e nem depois de ter partido eu pensei que pudesse encontrar fora o que não me davam aqui dentro.

– E o que é que não te davam aqui dentro?

– Queria o meu lugar na mesa da família.

– Foi então por isso que você nos abandonou? Porque não te dávamos um lugar à mesa da família?

– Jamais os abandonei, pai. Tudo o que eu quis ao deixar a casa foi poupar-lhes o olho torpe à custa de minhas próprias vísceras.

– O pão, contudo, sempre esteve à mesa, e  nunca ninguém te negou o direito de sentar-se com a família; ao contrário, era o desejo de todos que você nunca estivesse ausente na hora de repartir o pão.

– Não falo desse alimento. Participar só da divisão desse  pão pode ser em certos casos simplesmente uma crueldade; seu consumo só prestaria para alongar minha fome.

– Do que você está falando?

– Não importa?

– Você blasfema!

– Não, pai, eu não blasfemo. Pela primeira vez na vida eu falo como um santo.

– Você está enfermo, meu filho. Uns poucos dias de trabalho ao lado dos teus irmãos hão de quebrar o orgulho da tua palavra, te devolvendo depressa a saúde de que você precisa.

– Não me interesso pela saúde de que o senhor fala. Existe nela uma semente de enfermidade, assim como na minha doença existe uma poderosa semente de saúde.

– Esqueça teus caprichos, meu filho. Não há proveito em atrapalhar nossas ideias. Não afaste teu pai da discussão dos teus problemas.

– Não acredito na discussão dos meus problemas. Não acredito mais em troca de pontos de vista. Estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra.

Conversar é muito importante meu filho. Toda palavra, sim, é uma semente.

– Ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos tardios quando colhidos.

– É egoísmo próprio dos imaturos pensar só nos frutos quando se planta. A colheita não é melhor recompensa para quem semeia; já somos bastante gratificados pelo sentido das nossas vidas quando plantamos; já temos nossa recompensa só em fruir o tempo largo da gestação; já é um bem que transferimos se transferimos a espera para gerações futuras.

– Ninguém vive só de semear, pai.

– Claro que não, meu filho. Se outros hão de colher do que semeamos hoje, estamos colhendo por outro lado do que semearam antes de nós. É assim que o mundo caminha, é esta a corrente da vida.

– Isso já não me encanta, eu sei hoje do que é capaz essa corrente, dos que semeiam e não colhem, colhem do que não plantaram. Desse legado, pai, eu não tive o meu bocado. Por que empurrar o mundo pra frente? Se já tenho minhas mãos atadas, não vou, por iniciativa, atar meus pés também. Por isso, pouco me importa o rumo que os ventos tomem. Eu já não vejo diferença. Tanto faz que as coisas andem pra frente ou que elas andem pra trás.

Não quero acreditar no pouco que te entendo, meu filho.

– Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do carcereiro. Da mesma forma, de quem amputamos os membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto. Maior despropósito que isso, só mesmo a vileza do aleijão, que na falta das mãos, recorre aos pés para aplaudir o seu algoz. Fica meais feio o feio que consente o belo…

– Continue…

– Mais pobre o pobre que aplaude o rico; menor o pequeno que aplaude o grande; mais baixo o baixo que aplaude o alto. E assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam. Acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros. A vítima ruidosa que aprova o seu opressor se faz duas vezes prisioneira.

– É muito estranho o que eu estou ouvindo.

– Estranho é o mundo, pai, que só se une se dessumindo. Erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente. Não há nada mais falso que o mérito, pai, e não fui eu que semeei essa semente.

– O que você quer dizer com tudo isso?

– Não quero dizer nada.

– Você está perturbado, meu filho.

– Não, pai, não estou perturbado.

– Então, de quem é que você estava falando?

– De ninguém em particular. Eu só estava pensando nos desenganados, sem remédio, nos que não são supérfluos nos seus gemidos; nos que gritam de sede, ardência e solidão. Era só neles que eu pensava.

– Quero te entender, meu filho, mas já não entendo nada.

– Eu sei que misturo as coisas quando falo; são as palavras que me empurram, mas estou lúcido, pai. E , se há farelo nisso tudo, tem também aí muito grão inteiro.

– Mas sonega clareza pro teu pai, filho.

– Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas. Estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade.

– É forte quem enfrenta a realidade. Depois, estamos em família, que só um insano tomaria por um ambiente hostil.

– Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a mesma pra todos. E, de minha parte, a única coisa que sei é que todo meio é hostil desde que negue direito a vida.

– Não há hostilidade nessa casa. Ninguém aqui te nega direito à vida. Não é sequer admissível que esse absurdo te passe pela cabeça.

– É um ponto de vista.

– Não é um ponto de vista! Eu e tua mãe vivemos sempre para vocês, o irmão para o irmão. Nunca faltou apoio da família a quem necessitasse.

– O senhor não me entendeu, pai.

– Como é que eu posso te entender, André? Existe obstinação na tua recusa, isso também entendo. Onde você encontraria lugar mais propício para discutir os assuntos que te afligem?

 

……

 

(Lavoura Arcaica – Luiz Fernando Carvalho)