Contando Palavras

Postado por: em out 26, 2013 | 18 Comentários

Se o conceito de secular significa “o lugar onde Deus não é lembrado”, não existe música secular no Brasil.

Registro palavras que ouvi durante a viagem. Uma jornada que me manteve inteiramente atento à paisagem sonora da canção popular. Tentei não me distrair com os livros, não li muito, apenas documentei expressões e símbolos. O roteiro dessa viagem foi construido dentro da lista que a revista Rolling Stone fez em 2007, a lista dos 100 maiores discos da música brasileira. Tive a companhia da já conhecida de vocês Sarah Ferreira de Toledo e, mais recentemente, do físíco pernambucano Maelyson Rolim. Prestem atenção nele.

Meu amigo de Pernambuco é formado em física pela UFPE e hoje está completando o mestrado em física aplicada. Sua pesquisa aborda padrões estatísticos e termodinâmicos de textos literários! Sim, vocês já vão saber o que é isso.  O trabalho tem sido desenvolvido no sentido de “observar se a forma como as palavras são organizadas dentro de um texto, sobretudo no gênero literário romance, apresenta características universais e como tal distribuição pode ser utilizada para, entre outras coisas, extração de palavras-chave com baixo custo computacional”, explicou Maelyson, usando o vocabulário técnico necessário para isso.

Esse “cara de exatas com os dois pés em humanas”, me deixou fascinado com seu objeto de pesquisa. Em e-mail recente, ele continuou o assunto. Vamos ouvi-lo: “num trabalho chamado The automatic creation of literature abstracts publicado em 1958, H. P. Luhn propôs o uso do número de ocorrências como parâmetro para determinação de palavras-chave. Na última década inúmeros pesquisadores tem buscado ampliar essa abordagem e é nisso que tenho trabalhado.”

Maelyson, juntamente com seu orientador, construiu um programa para determinar diversos parâmetros de textos, como frequência (número de ocorrências de termos), distribuição e entropias. Apelidei a sua criação de “A Incrível Máquina de Contar Palavras”. E claro, pedi pra ele passar pelo programa todas as canções selecionadas pele revista. E assim ele fez, generosamente.

Os dados que vocês vão ver são relativos apenas ao número de ocorrências de cada verbete dentro da lista da Rolling Stone. São números. Portanto, não definem valor litero-musical ou a qualidade de qualquer canção. Gravem isso.

Era de se esperar, caso fôssemos presos ao senso comum, que palavras como estas que vocês vão ver, fossem propriedade do canto litúrgico das comunidades cristãs. Que esses símbolos não tivessem nenhuma ocorrência na rua. Que autores não sacros, ou não religiosos, suplantariam de sua obra estes termos tão ligados à religião cristã. Maelyson me enviou um arquivo contendo lista com todas as palavras utilizadas nas mais de 1200 canções que ouvimos (lista total da Rolling Stone). Ele também me apresentou todas as palavras que ocorrem nas cem canções  que a Sarah selecionou – aquelas que  vamos ver mais de perto aqui na série Espiritualidade na MPB. Para efeito de curiosidade, apresento a vocês aquelas palavras ligadas ao campo da espiritualidade e da religião cristã, presentes nas canções da série. Pela ordem de maior presença nos textos, nós ouvimos:

Palavras-chave na MPB

“Deus”, “Jesus”, “Fé”, “diabo”, “Senhor”, “Santo”, “Lord”, “Christ”, “Inferno”, “Haleluia”, “Glória”, “Alma”, “”Santa”, “Cristo”, “Padre”,  “Espírito”, “Pecado”, “Graça”, “Ave”, “Rezar”, “God”, “Sagrada”, “Eterno”, “Cruz”, “Igreja”, “Culpa”, “Aleluia” (sem H), “Crer”, “Reza”, “Amém”, “Perdão”, “Divina”, “Pastor”, “Perdoe”, “Hebron”, “Crentes”, “Misericórdia”, “Capítulo”, “Versículo”, “Jacó”, “Sodoma”, “Gomora”, “Divino”, “Serpente”, “Paraíso”, “Sagrado”, “Profecia”, “demônio”, “Louvado”, “Crucifixo”, “Glórias”, “Rezei”, “Anjos”, “Arcanjos”, “lúcifer”, “Batiza”, “Batizado”, “Jesu”, “Sancta”, “Nobus”, “Romaria”, “Tentação”, “Adão”, “Mártir”, “Eterna”, “Hino” , “Orai”, “Babel”, “Evangélico”, “Profeta”, “Judas”, “Salvo”, “Pecou”, “Bíblia”, “Mística”, “Páscoa”, “Crença”, “Católica”, “lúcifer”, “Evangélica”, “Pentecostal”, “Madre”, “Frei”, “Bispo”, “Presépio”, “Vigário”, “Belém”, “Papa”, “Creio”, “Milagre”, “Religião”, “Éden”, “Infernal”, “Reverendo”, “Pecava”, “Pecatoribus”, “Santidade”, “Infiel”, “Doutrina”, “Profetas”, “Hinos”, “Consagrar”, “Abençoar”, “Apocalyptic”, “Armageddon”, “Blasfemou”, “Blasfema”, “Blasfemei”, “diabos”, “Exorcista”, “Flamejando”, “Católico”, “Protestante”, “Capela”, “Benção”, “Abençoado”, “Livrai-nos”, “Perdição”, “Bendita”, “Procissão”, “Abraão”, “Ore”, “Culto”, “Pecados”, “Crucificaram”, “Crente”, “Judeu”, “Abel”, “Caim”, “Católicos”, “Calvário”, “Martin”, “Luther”, “Espíritos”, “Malignos”, “Salomão”, “Divinas”, “Protestantismo” e “Pastores”.

Estatísticas

Vejamos agora uma análise das 30 palavras que mais aparecem nas 100 canções da série. Vou colar os dados conforme Maelyson me passou e ao lado coloco as principais funções gramaticais de cada verbete. Da esquerda para direita temos a colocação no ranking das palavras, o número de vezes que ela ocorre, quem é a palavra e qual a sua principal função.

01) 931, O, artigo. def. masc. sing.

02) 826, QUE, pronome interrogativo, exclamativo,relat.

03) 736, DE, preposição

04) 720, A, artigo, pronome, preposição

05) 703, É, presente do indicativo verbo ser, 3a pes.

06) 699, E, conjunção aditiva

07) 568, EU, pronome, substantivo masculino

08) 560, NÃO, advérbio, substantivo masculino

09) 384, UM, numeral, artigo indefinido, adjetivo,

10) 283, NA, preposição, artigo definido

11) 282, NO, prep., pronome neutro, preposição

12) 282, PRA , preposição, pronome

13) 278, SE, conjunção, pronome pessoal

14) 270, DO, contração da prep. de e do artigo o

15) 228, DA, masculino, interjeição

16) 201, MEU, forma átona do pronome eu, subst. masc.

17) 199, ME, preposição

18) 195, COM, advérbio, subst. masculino, prep.

19) 184, MAIS, conj.aditiva, pron.  indef.

20) 183,TEM, do verbo ter

21) 175, UMA, feminino do numeral um

22) 156, VAI, do verbo ir

23) 152, EM,  preposição

24) 150, VOCÊ, pronome de tratamento, pron. indefin.

25) 144, QUEM,  pronome

26) 140, OS, art. def. masc. plur.

27) 130,, interjeição, variação do v. estar

28) 128, DEUS, substantivo masculino

29) 128, , adjetivo, adverbio, substantivo masc.

30) 118, MAS, conjunção, adverbio, palavra denotativa

Desconsiderando preposições, artigos e adverbios, preste atenção nas palavras que são usadas principalmente como substantivos, pronomes e verbos. Pela ordem decrescente de aparição temos: “Que” (pronome interrogativo, exclamativo…) 826 vezes, “A” (artigo, pronome, preposição) 720,  “É” (do verbo ser) 703 , “eu” (pronome, substantivo masculino”) 568, “não” (adverbio, substantivo masculino) 560, “Se” (conjunção, pronome pessoal) 278, “Meu” (Pronome possessivo, substantivo masculino) 201,  “Tem” (do verbo ter) 183, “Vai” (do verbo ir) 156, “Você” (pronome de tratamento, pron. indefin.) 150,  “Tá” (variação do verbo estar) 130,  “Deus” (substantivo masculino) 128 vezes e “Só” (adjetivo, adverbio, substantivo masculino) que também ocorre 128 vezes!

E daí?

Interessante notar a relação íntima que todas essas palavras têm com identidade e transcendência; buscamos descobrir quem somos, qual o sentido disso tudo e se existe alguém maior que os números.

Tá. O que isso significa? Entre tantas outras coisas, que a música popular brasileira tem na sua própria obra as razões para não dispensar a presença de todos os novos artistas cristãos que não fazem música litúrgica e que não se alinham à grife gospel. São as próprias canções brasileiras e não as prateleiras de mercado as verdadeiras detentoras de autoridade para dizer qual o lugar do espiritual na obra de arte. Me parece que todas essas palavras que acabamos de ver não deveriam ser ignoradas. Deveríamos notar que “Deus” está mais presente em nossas canções de rua do que imaginávamos. Deveríamos descobrir logo que  se o conceito de secular é “o lugar onde Deus não é lembrado”, não existe música secular. Ou melhor, a maior parte da música brasileira não trabalha sobre a égide do secularismo, não poderíamos dizer que ela é “iluminista’, mas sim romântica. Uma música que nasce da alma. Não há o que verificar cientificamente (paradigma secular) sobre os temas do amor, da solidão, da busca por sentido, da transcendência. O que tudo isso significa? Deus está falando do meio do redemoinho: “também pus no coração do homem o anseio pela eternidade; mesmo assim este não consegue compreender inteiramente o que eu faço”.

18 Comentários

  1. jethro martins
    26 de outubro de 2013

    “deveríamos notar que “Deus” está mais presente em nossas canções de rua do que imaginávamos.”
    deveríamos perceber que Jesus veio para derrubar os muros que nós insistimos em reerguer. uns que nos separam do mundo; outros que nos separam de nós mesmos.
    ótimo texto, marcos!

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  2. Lorrany Alves
    26 de outubro de 2013

    Eu nunca li um artigo de blog tão interessante e especialmente inteligente. Parabéns, Marcos. Você simplesmente supera o que é comum. Obrigada por isso!God bless.

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  3. pedro leal
    26 de outubro de 2013

    excelente pesquisa!

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  4. Carlos André
    26 de outubro de 2013

    Cada dia aprendo muito com seus artigos . Parabéns e que Deus continue abençoando vc e o PALAVRANTIGA. Estarei em São Luis a sua espera para adorarmos a Deus. Abraços

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  5. Valquiria
    26 de outubro de 2013

    Olá Marcos! Há um tempo venho lidado com essa questão aqui em casa: músicas litúrgicas e não-litúrgicas. Digo isso por causa da minha filha, 5 anos, que canta “Branca” e “Minha Menina” por horas a fio (rs). Sou musicista de igreja há 20 anos, e aqui em casa respiramos música. E ouço pessoas dizendo para minha filha não ouvir “música do mundo”. Eu digo a ela que isso não existe, que o que existe é “música de boa qualidade” (que seria a não litúrgica). E ela sabe exatamente que quando coloco alguma música não-litúrgica pra tocar, ‘mamãe está ouvindo música de boa qualidade’ (rsrs). Foi o jeito que meu marido e eu encontramos para não alienar a cabeça da menina… rsrs… pois ela mesmo já me disse: “Mãe, se essa música fala de amor, ela fala de Deus…” Então só me resta concordar! Um abraço! Obrigada por tratar deste assunto com tanta transparência.

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    • Laisa
      23 de dezembro de 2013

      Caramba Valquíria, que frase mais linda sua filha disse ein: “Mãe, se essa música fala de amor, ela fala de Deus…”
      E aí é que vemos, a sinceridade das crianças, não é mesmo?
      Tenho 17 anos e moro com meu pai, sou cristã e ele não, então convivo todos os dias com canções não-litúrgicas e sabe de uma coisa, aprendi muito com elas, afinal a nossa MPB, está repleta de pérolas. E acho digno alguém mostrar isso tão claramente como o Marcos Almeida.. Um abraço. Jesus te abençoe ricamente.

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  6. Carolina Rosinelli
    27 de outubro de 2013

    Como cristã e estudante de Letras “pirei” neste post. Hahahaaha !!

    Brincadeiras a parte, muito interessante de observar a ocorrência das palavras-chave na mpb. Nossa, estou admirada! Não imaginava a comum frequência de palavras como “Deus”, “Fé, “Senhor” e etc. Eu pensava: “Ah! Esse tipo de menção só aparece de vez em quando (quase nunca).”

    Esta série de posts está ótima. Parabéns, mais uma vez Marcos.

    God bless us!
    Beijos

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  7. julio xavier
    27 de outubro de 2013

    muito massa, acompanhando o site e aprendendo a cada dia.

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  8. Isaac
    3 de novembro de 2013

    Caro Marcos, seu texto é excelente! Concordo muito com você! Estou terminando minha graduação em filosofia e usei como tema da minha monografia o eixo temático “iluminismo e secularismo” de maneira que muito me interessou sua abordagem. Dentro do panorama musical (que apesar de não ser o foco do meu estudo, também muito me interessa) infelizmente predomina no meio da igreja brasileira o paradigma “louvor a Deus” e “música do diabo” sem espaços para entremeios. Creio que mais do que nunca cristãos como nós temos de desenvolver “impensados” e problematizar fatores culturais como esse que nada mais fazem senão que criar muros desnecessários. Conheci sei blog essa semana e já gostei muito!

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    • Marcos Almeida
      9 de novembro de 2013

      Obrigado Isaac e bem vindo!

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  9. David Nascimento
    18 de novembro de 2013

    Parabens pelo artigo ,que Deus te abençõe mais ae ,haja dicionario kkk

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  10. Joana
    21 de novembro de 2013

    Como cristã e física, “pirei” nesse post.
    Marcos, desde que conheci o seu blog o tenho admirado. Eu que sempre busco e muitas vezes consigo enxergar Deus em tudo, acho brilhante a maneira como você consegue fazê-lo na MPB.
    O que falar da física? ela com certeza está relacionada a tudo que possamos imaginar. no meu blog (http://www.coisasquedeusfala.umsocorpo.com.br/)eu escrevo sobre os princípios divinos e como há muita física neles ou como os princípios físicos estão lotados de princípios divinos.
    Agora me deparo com essa pesquisa do Maelyson Rolim, conterrâneo. a ideia dele é admirável

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  11. Wladimir
    5 de dezembro de 2013

    Cara, sou teu fã! Na boa, quanta elegância nas palavras!!!

    Tu apresenta a nós, leitores e admiradores de boa música, uma ideia – nova pra mim – com conteúdo e discernimento.

    Sou músico de Bento Gonçalves (RS), tenho 22 e membro da Igreja Metodista. Espero um dia poder trocar uma ideia contigo e, claro, assistir um show do Palavrantiga.

    Que Deus continue abençoando a tua vida e cumprindo todos os propósitos.

    Abraço!

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  12. Mariana Romeu
    6 de dezembro de 2013

    Marcos, estou gostando MUITO do que tenho lido por aqui…
    Gosto muito do Palavrantiga. E agora, admiro você por esse trabalho maravilhoso!
    Não importa ‘QUEM’ cantamos, mas sim O QUE cantamos.
    Que Deus te dê sabedoria, mais do que já tem, para nos passar todo esse seu conhecimento.
    Salamaleico,
    Abraços!

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  13. Laisa
    23 de dezembro de 2013

    “Se o conceito de secular significa “o lugar onde Deus não é lembrado”, não existe música secular no Brasil.”
    Cara, que frase mais linda!
    Olá Marcos, acompanho seu trabalho neste blog ha um tempinho e venho sempre aprendendo mais, obrigado por realizar este trabalho tão lindo!
    Ah e até hoje estou triste pois não fui ao show do Palavrantiga aqui em Goiânia, kkk
    Mas espero que haja outras oportunidades. Um abraço, que Deus te abençoe grandiosamente!

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  14. Gleyciane Braga
    8 de fevereiro de 2014

    Nossa,nunca pensei por este ângulo.Brilhante texto!

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  15. Sérgio Pereira
    1 de setembro de 2014

    Marcos-mano:

    Estou levando esses dados para o Encontro Estadual da ANPUH (Associação Nacional de História), hoje, relacionando com meu artigo “Música popular no Brasil e protestantismo: uma história de encontros e desencontros”. Muito obrigado pelas preciosas informações (e à Sarah Ferreira de Toledo e Maelyson Rolim)!

    Reply
    • Maelyson Rolim
      9 de setembro de 2014

      Olá Sérgio.

      Que notícia interessante. Podes compartilhar conosco suas impressões e ampliações?

      Um abraço!

      Reply

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