Catedral e o juízo gospel – por Ricardo Alexandre

Postado por: em set 12, 2013 | 17 Comentários

 

Uma manchete um tanto malandra e o rastro de destruição estava feito. Mais um capítulo do livro “Cheguei bem a tempo de ver o palco desabar”

 

Apesar de haver me convertido ao cristianismo de tradição protestante antes mesmo de começar a escrever profissionalmente, sempre fui desconfiado de qualquer coisa parecida com o que é conhecido como segmento “gospel”. Nunca cogitei me alinhar com tal target nem como profissional muito menos como consumidor e, se você me permite generalizar, sempre achei que a música evangélica era, no fundo, uma saída fácil para que artistas sem chance no mundo pop pudessem dar seus autógrafos, ter seus produtos licenciados e viver seu sonho de star. O chamado “rock gospel” do início dos anos 1990 não diminuiu minha antipatia, muito pelo contrário. Música para mim sempre foi assunto sagrado demais para ser profanada por pseudos.

 

Mas aconteceu que em 1999 a gravadora WEA anunciou a contratação do grupo carioca Catedral, embalado naqueles típicos projetos de marketing vergonhosos vindos de grandes gravadoras: a multinacional queria oferecer a banda como uma espécie de substituta da Legião Urbana, especialmente do lado mais espiritualizado e “conselheiro” da banda de Brasília – dali alguns anos, de fato contrataria o tecladista da Legião, Carlos Trilha, para produzi-los e reforçar a conexão. Do lado do quarteto evangélico, o desejo declarado era romper com o mercado dito gospel e avançar para o mercado dito secular, passo que se anunciava já havia alguns anos, em músicas cuja temática religiosa eram mascaradas em letras de amor.

 

O Catedral havia surgido em 1988 fazendo um som que em nada lembrava a Legião nem suas matrizes estéticas. Mas encontrou seu nicho de mercado no mesmo balaio que deu certa (má) fama ao grupo Cogumelo Plutão, por exemplo, o de pretensos estepes do grupo de Brasília. Em tempos em que o “serviço de implantação de novos produtos no mercado” andava de vento em popa entre as gravadoras e as rádios, a música “Eu quero sol nesse jardim” já tocava em FMs jovens.  Nem a Legião Urbana soaria tão caricaturalmente Legião Urbana quanto naquela balada de violãozinho com vocal empostado e letra sobre jardins, luz da manhã e azul do céu. Marcelo Bonfá chamou o grupo de “cópia paraguaia”; Dado Villa-lobos de “Denorex” (o xampu do slogan “parece, mas não é”).

 

Recebi o disco na redação da Usina do Som e encomendei ao talentoso repórter Ricardo Pieralini que visitasse o Catedral e descobrisse aonde eles queriam chegar com tudo aquilo. Lembro de tê-lo advertido de que dinheiro era a menor das tentações, uma vez que o mercado gospel já era muito mais promissor do que o mercado secular, realidade que só se acentuou nos anos seguintes. E o repórter foi em sua missão.

 

A banda Catedral: do circuito religioso carioca para o "Disk MTV", "Rock Gol" e para o alvo do farisaísmo evangélico

A banda Catedral: do circuito religioso carioca para o “Disk MTV”, “Rock Gol” e para o alvo do farisaísmo evangélico

 

Pieralini voltou dizendo que, sem compartilhar da minha desconfiança, não havia encontrado nada além do que encontrava em todo artista que entrevistava: quatro pessoas querendo atingir um número sempre maior de pessoas. Na verdade, penso hoje eu, o Catedral tentava fazer na época, com o talento de que dispunham, o que um número razoável de bandas cristãs brasileiras tenta fazer atualmente: dar um passo fora do seguro target gospel, dialogar com a sociedade, e influenciá-la como fizeram Bob Dylan ou o U2. Mas o Catedral não sabia se explicar e ninguém parecia muito interessado em entendê-los. Tínhamos, pelo menos um título chamativo – ou apelativo, se você preferir, para buscar audiência na home do site, àquela altura o maior sobre música da América Latina, com mais de um milhão de usuários cadastrados: “A igreja é uma merda”.

 

No terceiro ou quarto parágrafo do texto, a um clique de distância, a frase era explicada. A banda dizia, ou queria dizer, que, artisticamente, manter-se restrito ao circuito formado por frequentadores de igreja, é um beco sem saída, é restritivo, uma porcaria, um cocô, uma merda. Foi um título maldoso, não posso negar, minha máxima culpa. Não mais maldoso do que as maldades que eu já reservei ao Cidade Negra, é verdade, mas ainda assim pilantra, um tipo de manchete que só se explica no meio do texto, uma técnica que eu me recusei a repetir desde então, por mais ingênuo e despreparado que seja o artista que deixa escapar uma frase como essa.

 

A diferença entre o Cidade Negra e o Catedral é que a maldade em direção a estes me levaram a conhecer as profundezas do farisaísmo gospel. A “notícia” de que o Catedral haveria “renegado”, “apostatado” e “zombado do corpo de Cristo” grassou com uma velocidade absurda, sem tempo para contextualizar a frase infeliz. Aquele foi o conteúdo mais acessado do site até então. Lembro de, no sábado, dia seguinte à publicação, descendo em direção ao litoral, ter cruzado com nada menos do que três rádios evangélicas repercutindo a notícia, nunca consultando a banda, sempre em tom de impiedade e condenação. A gravadora MK Publicitá, responsável pelo lançamento dos seis álbuns anteriores do grupo, aproveitou para fazer marketing e anunciou imediatamente o recolhimento dos álbuns, por causa da “quebra de compromisso” do grupo com a igreja. Vários pastores e músicos vieram a público praticar o velho esporte de arvorarem-se santos diante do que supunham ser o desvio dos outros.

 

A repercussão foi tanta, e as pressões da gravadora tamanhas contra um site que, de fato, dependia da simpatia das companhias, que decidimos tirar a reportagem do ar na segunda-feira, deixando um rastro impressionante de destruição.

 

Combinei com Pedro Só, meu diretor, que eu em pessoa conduziria uma grande reportagem sobre o mercado gospel – desde aquela época sinônimo de audiência e controvérsia, tudo pelo que babávamos diariamente. Seria a primeira vez em sete anos de carreira que eu escreveria algo relacionado a religião.

 

Meus primeiros entrevistados foram justamente os músicos do Catedral (o fair-play em me receber cordialmente, em meio à tormenta em que se meteram, é gesto de nobreza de espírito que me impressiona até hoje). A partir dali mergulhei no enxofre: travei uma hora de conversa surreal com a bispa Sônia Hernandes em que ela começava tentando me convencer de suas boas intenções em registrar a palavra “gospel” em seu nome e terminava chorando nervosamente; me impressionei com o pensamento vivo de Yvelise de Oliveira, dona da MK Publicitá, segundo o qual os desejos mais elevados de todo artista gospel não eram maiores do que dar autógrafo e tirar fotos ao lado dos fãs; e fui verdadeiramente iluminado por uma professora de música numa faculdade de teologia batista, quando ela me chamou a atenção para o macaqueamento dos modelos americanos entre os góspeis brasileiros.

 

Guardo essas entrevistas em cassete até hoje. Teria rendido uma reportagem histórica, mas a bolha da internet estourou e os jornalistas com os salários mais altos foram os primeiros a serem cortados de suas redações. O Catedral lançou outros discos pela WEA, frequentou o Disk MTV e o Rock Gol, tornou-se ainda mais parecido com a Legião Urbana, processou a MK Publicitá, ganhou, e entrou na década de 2010 com um trânsito razoável entre os dois mercados. (O gospel brasileiro é o único gênero musical em que os próprios artistas pensam em termos de “mercado” como se fosse um contingente artístico). Os músicos brasileiros de matriz cristã consideram o evento “Usina do Som” como um marco para que outros nomes se acovardassem em dar o passo fora de seu segmento. A Usina do Som, gastando em banda pelo sucesso de público e sem ideia de como reverter isso em receita, foi diminuindo de tamanho até fechar em 2005, justamente o ano do advento da web 2.0. E eu aproveitei o tempo livre para finalmente terminar meu primeiro livro, Dias de luta: O rock e o Brasil dos anos 80

 

 

Ricardo Alexandre

[Texto publicado com a devida autorização do autor, que escreve regularmente neste endereço: http://musica.br.msn.com/blog ]

 

17 Comentários

  1. Douglas Soares
    12 de setembro de 2013

    certo! mas, o que ele quis dizer mesmo?????

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  2. Vinicius Rasec
    13 de setembro de 2013

    Interessante… Pra que acompanhou Catedral desde os anos 80, realmente foram muitas distorções sobre o que aconteceu com a banda e porque tomaram aquele rumo, mas nunca antes esclarecido totalmente. Enfim, até hoje gosto das músicas deles, tanto da época do gospel quanto dos últimos CDs e DVDs… Catedral fez parte da minha vida e aprendi a tocar violão escutando eles e Legião (kkkkk irônico mas verdade)… E uma coisa é certa, a igreja do perdão ainda não perdoou Catedral (penso o mesmo do Caio Fabio). E o mercado gospel é isso ai, como descrito na reportagem… GRANA… Igualzinho ao secular, só não enxerga isso quem não quer.

    Enfim, um abraço ae !

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  3. Mônica Rezende
    13 de setembro de 2013

    Foi demais! Explícito, crú, e real! Acontece, querendo nós ou não…

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  4. Taly
    13 de setembro de 2013

    Seguinte, quem usa da palavra de Cristo para se promover ( como muitos que julgaram a Banda Catedral, hoje se promovem ) É sem dúvida, COVARDE!
    A Banda Catedral fez gravações em mercado gospel, mas sempre deixou bem claro que o som deles era para TODOS os que queriam ouvir. ”Ah, mas muitos do mercado gospel falam isso.” Falam, mas a hipocrisia fala mais alto. Acompanho Catedral desde o início da banda, e NUNCA vi o vocalista, ou outros integrantes da banda, fazerem do show um ”culto” evangélico, com aqueles atos característicos do meio gospel… Chamando o público para aceitar Cristo, fazendo orações… NUNCA! Quanto ao caso de comparar a banda com Legião Urbana, vamos analisar que são de um mesmo meio musical, as vozes se assemelham sim, mas Catedral é Catedral, Legião é Legião. Ambos ótimos grupos de Pop Rock nacional, letras belíssimas e essências de outro mundo.

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    • Diego
      15 de setembro de 2013

      Taly, eu ia comentar, mas vc tirou as palavras da minha boca. 🙂

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  5. fabio velame
    14 de setembro de 2013

    Foi uma covardia imensa feita contra a banda, onde teve consequências talvez inimagináveis, talvez o responsável pela publicação nem tivesse almejado tal fato.
    Mas como jornalista ele deveria saber que ele é responsável pela reprodução, sendo que ele colocou algo que a banda não falou.

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  6. Kennedy
    18 de setembro de 2013

    Agora me questiono o que é pior: “copiar” a Legião ou ser pernicioso?

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  7. Leandro Carvalho
    18 de setembro de 2013

    A quem interessar ver o outro lado da moeda http://www.youtube.com/watch?v=uf-8E5F-698&feature=share&list=PLD5D762F6B70C9E62

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  8. Jennifer
    18 de setembro de 2013

    O que as pessoas fazem por ibope é ridículo e o que o meio “gospel” faz com os que pensam diferente deles também é ridículo! Amo a banda Catedral desde criança e ainda criança,inúmeras vezes fui privada de ouvi-los pq “não são de Deus”, aff quanta hipocrisia no meio da igreja… As pessoas deviam se preocupar mais com a própria vida e deixar de julgar os outros.

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  9. Fernanda
    20 de setembro de 2013

    Uma das lembranças mais lindas da minha adolescência foi aqui no Rio de Janeiro, num culto em uma Igreja Batista da ABL, onde a Banda Catedral participou de um congresso de adolescentes. Cantaram músicas que edificaram nossas vidas e também, pernaneceram na igreja até quase meia noite recebendo e aconselhando os jovens e adolescentes ali… A Banda Catedral faz parte da minha história. Não acreditei no que foi dito na época e acedito muito menos agora. Em relação a eles eu acredito no que eu vi e no que vivi.

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    • Bruno Anastacio
      20 de setembro de 2013

      Então, Fernanda: essas coisas ninguém publica no jornal, né… Triste!

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  10. Nossa Brasilidade » A Catedral depois da tormenta.
    20 de setembro de 2013

    […] pedido a Ricardo Alexandre, o editor da infeliz matéria (2001), que vá além do texto-confissão (2013) e procure Catedral, como irmão em Cristo. Desejo que as vaidades do showbiz sejam abatidas pelas […]

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  11. Catedral Conta Toda Verdade | Tirando Chips
    21 de setembro de 2013

    […] 12 anos depois de uma entrevista mal repercutida, o editor-chefe da matéria admitiu nessa matéria que a manchete foi “malandra” deixando assim um rastro de […]

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  12. Tony
    29 de outubro de 2013

    “Foi um título maldoso, não posso negar, minha máxima culpa. Não mais maldoso do que as maldades que eu já reservei ao Cidade Negra, é verdade, mas ainda assim pilantra”
    isso é uma filha da putisse sem tamanho.

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  13. Davi Cavalcante
    2 de janeiro de 2014

    Esse Ricardo e a MK de longe foram uns pilantras nessa história toda, lembro-me das expressões: “Catedral foi no Jô e apostatou a fé”, procurei vídeos e NADA. Cedo ou tarde a real história viria a tona.

    Ah quem quiser ver, tem um vídeo da banda Catedral falando sobre o assunto no YouTube após revelação.

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  14. Matheus
    26 de janeiro de 2014

    Demorou pra esse cara reconhecer o estrago que fez. Eu era adolescente na época, mas lembro perfeitamente da repercussão e de como a Banda Catedral foi massacrada e demonizada nas igrejas e fora dela. Eu mesmo fui levado a acreditar nessa mentira, que acabou acarretando em outras mentiras. Os caras estavam no caminho certo, revolucionando e derrubando essa barreiras gospel e secular, numa época em que ninguém tinha essa coragem. Lamentável tudo o que aconteceu com eles.

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  15. jenny
    13 de fevereiro de 2014

    Mas isso não muda o fato… Se ele tivesse falado a verdade a banda não teria perdidos tantos fans e não teriam sido “apedrejados” pela Igreja, como muitos sabem. Essa inresponsabilidade fez a banda passar por momentos dificeis, como já sitei a perda de fans, de discos (a MK recolheu os discos que ela havia lançado deles). Mas a justiça tarda mais não falha. Principalmente a de Deus.

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